segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005
Dora Maar
Hoje foi dia de Dora Maar aqui em casa. Para celebrar este facto, eis o célebre quadro de Picasso sobre Dora Maar (ou Dora Markovitch), a fotógrafa "argentina" de origem croata com quem Picasso viveu. O local de nascimento de Dora Maar é, para mim, ainda um mistério (França, Croácia, Rússia,...). Pintado no mesmo ano do que a Guernica, este quadro não visa tanto traçar os movimentos de um rosto - uma das motivações centrais do futurismo -, mas, antes, expressar a fragmentação de si e a multiplicidade de perspectivas sobre o mundo. Nele ecoam as reflexões de Melville (Moby-Dick) sobre o olhar e a exigência de superar a nossa habitual visão de Ciclope.
Play Taboo
Em que medida as suas convicções morais são sólidas? Considera-se um universalista ou um relativista? Será que é um permissivo sem saber que o é? Para obter respostas a estas e a outras questões nada melhor do que responder a este teste (em inglês) e, assim, obterá um perfil moral da sua identidade. Como dizia Sócrates, uma vida que não é examinada até ao fim não merece ser vivida.
domingo, 27 de fevereiro de 2005
Um Sorriso nos Olhos da Alma
O blog Almocreve das Petas lembra que a 27 de Fevereiro de 1912 nascia o escritor inglês Lawrence Durrell. Natural da Índia, Durrell viveu sempre fascinado por um Mediterrâneo que venera o Oriente, como se pode ver nas suas principais obras: a Provença olhando o Egipto gnóstico no Quinteto de Avinhão, a Alexandria do Quarteto (provavelmente uma das obras literárias mais influentes no imaginário contemporâneo) e um Sorriso "daoísta" nos Olhos da Alma (A Smile in the Mind's Eye). Segundo Durrell, cada um de nós "tem dois lugares de nascimento, aquele em que nasceu realmente e o local de escolha onde realmente acordou para a realidade." O escritor morreu em 1990.
Pagodice
A língua de um povo não é só feita de significados, mas também de atitudes. Poder-se-ia mesmo perguntar se cada significado não é mais do que uma condensação de gestos e sentimentos. Ora, não se pode dizer que o Oriente, seja ele "médio" ou "extremo", recolha a simpatia ocidental. Um rabino ou rabi designa o mestre espiritual da comunidade judaica. Mas, segundo o excelente Dicionário Houaiss, rabino é igualmente aquele que é irrequieto, buliçoso, dado a travessuras, mal-humorado, rabugento e ranzinga. Por sua vez, o bonzo é um termo comum para referir os monges budistas do Extremo-Oriente (China, Japão). Longe do rebuliço do rabino, é sinónimo, na nossa língua, de indivíduo preguiçoso, pessoa medíocre, ignorante e sonso. Um último exemplo: pagode indica uma forma de construção religiosa presente tanto na Índia como no Oriente mais distante. Só que significa, para nós, a pândega e o divertimento licencioso.
sábado, 26 de fevereiro de 2005
A Rosa de Ninguém
"Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.
Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.
Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.
Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-do-céu,
a corola vermelha
da púrpurea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho."
"Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unsern Staub.
Niemand.
Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.
Ein Nichts
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.
Mit
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über
dem Dorn."
Paul Celan, "Salmo" in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética, edição bilingue, trad.port. João Barrento e Y.K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 1996 (2ªedição).
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.
Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direcção
a ti.
Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.
Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-do-céu,
a corola vermelha
da púrpurea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho."
"Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unsern Staub.
Niemand.
Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.
Ein Nichts
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.
Mit
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über
dem Dorn."
Paul Celan, "Salmo" in Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética, edição bilingue, trad.port. João Barrento e Y.K. Centeno, Lisboa, Cotovia, 1996 (2ªedição).
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005
Perfeição e Simplicidade
Mais uma fotografia de Jusanji, o local onde foi realizado o filme de Kim Ki-duk, Primavera,.... Sobre este filme coreano-germânico (quase todo o capital necessário à produção veio directamente da Alemanha), cito uma passagem de uma recensão crítica do filme que encontrei no Internet Movie Database : "Perfect: The film is as close to perfect as a film could get. No shot is presented to us, nor a line of dialog uttered that does not make us ponder and understand at the same time. The film is also beautiful. (Like the previous reviewer, I am a fan of Asian cinema and never tire of the stunning ability of Asian directors to capture beauty on film.) This film exceeds most other Asian films I have seen in the cinematography regard. However, its beauty is surprisingly deceptive. Like most great films, it surpasses the 'cinematography' level of beauty and delves into the beauty of existence through its story. For example, the Old Monk has a different pet during each 'season' of his life. This is not discussed by the characters nor shoved in our face by the director - as would have been done if Hollywood had done this film. It is merely background we experience and come to understand. Two days after viewing the film, I am still finding new reflections in my mind that encompass the cinematography, the literal story and the underlying context of the film.
Simplicity: This film approaches a level of cinematic Haiku. While I don't recall the entire dialog with any specificity, I am sure you could print the script on one page of paper. The amazing part is that while you are watching the film, you don't notice this. Every shot moves the story along. The simplicity of life as shown by the story is reflected in the simplicity of the film. After the film ended, I had a strong urge to move away from civilization and live - or die - in peace with nature. I enjoy (and have come to be too dependent upon) modern inventions, so I will stay at home. However, this film will remain in my heart. It does exactly what good story-telling is supposed to do: Take us completely out of our world and put us in another."
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005
Bússola Política
Sente-se desorientado na actual vida política? Já não sabe se é de esquerda, de direita ou do centro? Acha que é uma pessoa autoritária ou libertária? Então chegou ao sítio certo! Responda a este questionário do Público e saberá a verdade. Importa referir que foi através do Divas & Contrabaixos que tomei conhecimento desta bússola e fiquei finalmente a saber a minha posição política: sou um libertário de esquerda sem nada de excessivo...:-) (esquerda/direita: - 4.25; libertário/autoritário: -3.95). Será que vou finalmente a caminho do "centro" que está em toda a parte?
Jusanji
Ontem terminei o visionamento em DVD do filme do realizador coreano Kim Ki-duk, Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera. Já há alguns meses, tinha sublinhado a importância deste filme. É uma fábula sobre os ciclos da vida e das estações, sem cair no didactismo. A fotografia e a música são de uma qualidade que é infelizmente rara no cinema actual. O filme é realizado num parque natural da Coreia, na zona de Jusanji. O parque chama-se Juwangsan, sendo Jusanji um pequeno lago artificial construído no século XVIII. O realizador mandou edificar um pequeno templo zen numa jangada que, assim, vai flutuando ao longo do filme. Por razões de conservação da identidade do local, o templo foi destruído após a conclusão do filme.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005
Ora aqui está uma solução para os problemas da produtividade nacional. No Japão, quem se sente engripado usa uma máscara para evitar a contaminação de outras pessoas. É um hábito também seguido por todos aqueles que receiam ficar doentes...Claro que esta atitude hiper-cívica acarreta alguns efeitos colaterais divertidos. Já imaginaram uma campanha eleitoral em Portugal com os nossos políticos de máscara? Aqui para nós, julgo que eles agradeciam...
terça-feira, 22 de fevereiro de 2005
Terranatur
Para quem gosta de fotografia, recomendo vivamente o trabalho de Artur V. Oliveira que se encontra no seguinte site www.terranatur.com
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2005
Gesar
E aqui está o zoom...que nos permite encontrar a figura tradicional de Gesar de Ling, o herói tibetano por excelência, o "César" dos Himalaias, cuja história conhecemos pela primeira vez através da versão de Alexandra David-Néel. O poema épico de Gesar é a obra-prima da literatura tibetana e é provavelmente a obra literária mais extensa que a humanidade conheceu, conseguindo superar o Mahabharata indiano. Peguem na Ilíada e multipliquem-na por 25...
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Tibete
Esta imagem tibetana do Buda histórico - geralmente designado por Shakyamuni, o sábio dos Shakia (o clã onde nasceu Siddatha) - tem vários segredos. O mais óbvio é a multiplicação de Budas à sua volta... mas, a meu ver, o mais interessante é a presença de Gesar de Ling, desenhado na parte inferior da imagem. Esperem pelo Zoom da próxima imagem...:-)
domingo, 20 de fevereiro de 2005
Esta fotografia retrata o Alentejo que conhecia, a saber, um mar de castanho e de verde a perder de vista! Estive lá nestes dois últimos dias e a sensação é desoladora. Se não fossem as diferenças de temperatura, até parecia que estávamos em pleno Agosto. Só que estamos em Fevereiro... A desertificação caminha a passos largos. Quando parti, falava do protocolo de Quioto e do facto de ele ter entrado em vigor no dia 16; agora vi ao vivo como ele é cada vez mais urgente para Portugal.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005
terça-feira, 15 de fevereiro de 2005
País Longínquo
"O meu sofrimento
É simples
Tal como para cuidar de um animal de um país longínquo
Não é necessário um tratador.
A minha poesia
É simples
Tal como para ler uma carta de um país longínquo
Não são necessárias lágrimas
As minhas alegrias e penas
Ainda são mais simples
Tal como para matar um homem de um país longínquo
Não são necessárias palavras"
Poema de Tamura Ryuichi (1923-1998)
trad. de José Alberto Oliveira in Rosa do Mundo
É simples
Tal como para cuidar de um animal de um país longínquo
Não é necessário um tratador.
A minha poesia
É simples
Tal como para ler uma carta de um país longínquo
Não são necessárias lágrimas
As minhas alegrias e penas
Ainda são mais simples
Tal como para matar um homem de um país longínquo
Não são necessárias palavras"
Poema de Tamura Ryuichi (1923-1998)
trad. de José Alberto Oliveira in Rosa do Mundo
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005
O Tempo de um Kabuki
"A sala está cheia. Numerosas mulheres vestem quimono; apenas o fazem alguns homens, sobretudo os mais velhos. Turistas estrangeiros salpicam a assistência em número muito pequeno que se tornará rapidamente mais diminuto, pois nove em cada dez desaparece no final do primeiro espectáculo; os seus guias e amigos japoneses disseram-lhes que um estrangeiro não suporta mais de trinta minutos de kabuki." (Marguerite Yourcenar, Le Tour de la prison, Paris, Gallimard, 1991, p.83). Ora, como assinala a escritora belga, o kabuki pode ter uma duração aproximada de quarenta horas, divididas naturalmente em várias sessões. O mais curioso é que o kabuki constitui uma forma de arte com fortes raízes populares, em contraste com o Noh/Nô. A conclusão é óbvia e não é nova: a civilização moderna ocidental está a roubar-nos tempo enquanto todos nós pensamos o contrário. Faz-me lembrar o romance "infantil" do grande escritor alemão Michael Ende, Momo, no qual "homens cinzentos" nos roubam o tempo com a promessa de que vamos ter mais.
As Raízes do Fundamentalismo
Transcrevo aqui as duas principais recensões da obra de Karen Armstrong, The Battle for God (2000), apresentadas na Amazon.com:
1. "In our supposedly secular age governed by reason and technology, fundamentalism has emerged as an overwhelming force in every major world religion. Why? This is the fascinating, disturbing question that bestselling author Karen Armstrong addresses in her brilliant new book The Battle for God. Writing with the broad perspective and deep understanding of human spirituality that won huge audiences for A History of God, Armstrong illuminates the spread of militant piety as a phenomenon peculiar to our moment in history.
Contrary to popular belief, fundamentalism is not a throwback to some ancient form of religion but rather a response to the spiritual crisis of the modern world. As Armstrong argues, the collapse of a piety rooted in myth and cult during the Renaissance forced people of faith to grasp for new ways of being religious--and fundamentalism was born. Armstrong focuses here on three fundamentalist movements: Protestant fundamentalism in America, Jewish fundamentalism in Israel, and Islamic fundamentalism in Egypt and Iran--exploring how each has developed its own unique way of combating the assaults of modernity.
Blending history, sociology, and spirituality, The Battle for God is a compelling and compassionate study of a radical form of religious expression that is critically shaping the course of world history."
2. "About 40 years ago popular opinion assumed that religion would become a weaker force and people would certainly become less zealous as the world became more modern and morals more relaxed. But the opposite has proven true, according to theologian and author Karen Armstrong (A History of God), who documents how fundamentalism has taken root and grown in many of the world's major religions, such as Christianity, Islam, and Judaism. Even Buddhism, Sikhism, Hinduism, and Confucianism have developed fundamentalist factions. Reacting to a technologically driven world with liberal Western values, fundamentalists have not only increased in numbers, they have become more desperate, claims Armstrong, who points to the Oklahoma City bombing, violent anti-abortion crusades, and the assassination of President Yitzak Rabin as evidence of dangerous extremes.
Yet she also acknowledges the irony of how fundamentalism and Western materialism seem to urge each other on to greater excesses. To "prevent an escalation of the conflict, we must try and understand the pain and perception of the other side," she pleads. With her gift for clear, engaging writing and her integrity as a thorough researcher, Armstrong delivers a powerful discussion of a globally heated issue. Part history lesson, part wake-up call, and mostly a plea for healing, Armstrong's writing continues to offer a religious mirror and a cultural vision.(texto de Gail Hudson)
1. "In our supposedly secular age governed by reason and technology, fundamentalism has emerged as an overwhelming force in every major world religion. Why? This is the fascinating, disturbing question that bestselling author Karen Armstrong addresses in her brilliant new book The Battle for God. Writing with the broad perspective and deep understanding of human spirituality that won huge audiences for A History of God, Armstrong illuminates the spread of militant piety as a phenomenon peculiar to our moment in history.
Contrary to popular belief, fundamentalism is not a throwback to some ancient form of religion but rather a response to the spiritual crisis of the modern world. As Armstrong argues, the collapse of a piety rooted in myth and cult during the Renaissance forced people of faith to grasp for new ways of being religious--and fundamentalism was born. Armstrong focuses here on three fundamentalist movements: Protestant fundamentalism in America, Jewish fundamentalism in Israel, and Islamic fundamentalism in Egypt and Iran--exploring how each has developed its own unique way of combating the assaults of modernity.
Blending history, sociology, and spirituality, The Battle for God is a compelling and compassionate study of a radical form of religious expression that is critically shaping the course of world history."
2. "About 40 years ago popular opinion assumed that religion would become a weaker force and people would certainly become less zealous as the world became more modern and morals more relaxed. But the opposite has proven true, according to theologian and author Karen Armstrong (A History of God), who documents how fundamentalism has taken root and grown in many of the world's major religions, such as Christianity, Islam, and Judaism. Even Buddhism, Sikhism, Hinduism, and Confucianism have developed fundamentalist factions. Reacting to a technologically driven world with liberal Western values, fundamentalists have not only increased in numbers, they have become more desperate, claims Armstrong, who points to the Oklahoma City bombing, violent anti-abortion crusades, and the assassination of President Yitzak Rabin as evidence of dangerous extremes.
Yet she also acknowledges the irony of how fundamentalism and Western materialism seem to urge each other on to greater excesses. To "prevent an escalation of the conflict, we must try and understand the pain and perception of the other side," she pleads. With her gift for clear, engaging writing and her integrity as a thorough researcher, Armstrong delivers a powerful discussion of a globally heated issue. Part history lesson, part wake-up call, and mostly a plea for healing, Armstrong's writing continues to offer a religious mirror and a cultural vision.(texto de Gail Hudson)
domingo, 13 de fevereiro de 2005
Karen Armstrong
Karen Armstrong, antiga freira católica inglesa, actual professora de história das religiões no prestigiado centro universitário judaico, Leo Baeck College em Londres, e autora do célebre livro, já traduzido em português, A History of God. Escreveu, a meu ver, o melhor estudo sobre o fundamentalismo: The Battle for God.
A Natureza da Religião
Era meu objectivo relembrar hoje as viagens de Bran - o nosso São Brandão - e citar alguns poemas W.B. Yates. Mas ao visionar o documentário de Plácido Domingo sobre o Parsifal (Parsifal. The Search for the Grail), deparei-me como uma entrevista notável de Karen Armstong, uma das melhores especialistas da história das religiões. As palavras são simples e, no entanto, dizem o essencial: "As Igrejas e as pessoas religiosas em geral esqueceram a própria noção de compaixão. Todas as grandes religiões do mundo insistem que a única base das ideias religiosas, dos símbolos e de qualquer teologia, é a compaixão em relação a todos os seres vivos. O Novo Testamento, os Profetas hebreus e o Corão repetem-no sem cessar. É isto que é a religião. É, também, o que nos é dito na história do Graal. Não se trata de provar a existência de Deus nem de encontrar o Graal para o levar triunfalmente ao Rei Artur. Isso não é a religião. É, sim, abrir o seu coração aos outros, pois só no momento em que nos reconciliamos com os nossos inimigos é que encontramos o divino. As Igrejas esqueceram-se disso, demasiado ocupadas com o seu dogma ou em condenar outros seres humanos que têm crenças diferentes. Dilaceram-se em torno de temas tão ridículos como o de saber se as mulheres devem ascender ao sacerdócio ou sobre qual o melhor tipo de contracepção. (...) Neste século, quantas atrocidades foram cometidas contra seres humanos em nome de Deus enquanto ídolo forjado à nossa imagem. Se nos esquecermos que o divino está presente em qualquer ser humano com quem nos cruzamos, perdemos o próprio sentido da religião."
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sábado, 12 de fevereiro de 2005
Tir na nOg
Apesar da cultura celta nos ser tão próxima (será que já esquecemos os "celtiberos"?), o nosso fascínio por uma das mais importantes culturas indo-europeias queda-se habitualmente por um olhar distraído em relação às secções ditas de "música celta" que existem em quase todas as lojas de música.
Relembremos um dos seus principais mitos, o mito de Tir na nÓg, narrado pelo grande poeta Yates:
"Há um país chamado Tir na nÓg, ou seja, "Terra dos jovens", porque a velhice e a morte ainda não deram com ele, nem as lágrimas ou o riso grosseiro dele se aproximaram. Um bosquedo umbroso cobre-o perpetuamente. Apenas um homem foi até lá e regressou. Oisin, o bardo, que, largando sobre o dorso de um cavalo branco e deslocando-se à superfície das águas com a sua fada Niahm, nele viveu trezentos anos e dele regressou, em busca dos seus camaradas. No instante em que tocou terra firme com o pé, os seus trezentos anos despenharam-se sobre ele e vergaram-no de tanta sujeição, e a sua barba varreu o chão. Antes de morrer, descreveu a Patrick a sua estadia na Terra da Juventude. Desde então, muitos têm avistado este país em muitos lugares; alguns no fundo dos lagos, e escutaram um vago dobrar de sinos subindo até si; outros, mais numerosos, no longe do horizonte, à medida que venciam os penhascos da costa ocidental. (...) De acordo com inúmeros relatos, Tir na nÓg é a preferida das fadas. Alguns dizem que é um país triplo - a ilha dos vivos, a ilha das vitórias e a terra submersa."
Yates, As Tribos de Danu. Escritos sobre a tradição e a mitologia irlandesa, (1888-1902), trad.port., sl, Usus Editora, 1995, p.36.
Relembremos um dos seus principais mitos, o mito de Tir na nÓg, narrado pelo grande poeta Yates:
"Há um país chamado Tir na nÓg, ou seja, "Terra dos jovens", porque a velhice e a morte ainda não deram com ele, nem as lágrimas ou o riso grosseiro dele se aproximaram. Um bosquedo umbroso cobre-o perpetuamente. Apenas um homem foi até lá e regressou. Oisin, o bardo, que, largando sobre o dorso de um cavalo branco e deslocando-se à superfície das águas com a sua fada Niahm, nele viveu trezentos anos e dele regressou, em busca dos seus camaradas. No instante em que tocou terra firme com o pé, os seus trezentos anos despenharam-se sobre ele e vergaram-no de tanta sujeição, e a sua barba varreu o chão. Antes de morrer, descreveu a Patrick a sua estadia na Terra da Juventude. Desde então, muitos têm avistado este país em muitos lugares; alguns no fundo dos lagos, e escutaram um vago dobrar de sinos subindo até si; outros, mais numerosos, no longe do horizonte, à medida que venciam os penhascos da costa ocidental. (...) De acordo com inúmeros relatos, Tir na nÓg é a preferida das fadas. Alguns dizem que é um país triplo - a ilha dos vivos, a ilha das vitórias e a terra submersa."
Yates, As Tribos de Danu. Escritos sobre a tradição e a mitologia irlandesa, (1888-1902), trad.port., sl, Usus Editora, 1995, p.36.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005
A Carícia e a Liberdade
"A mão toma e o espírito compreende. A mão segura a sua presa o espírito cria conceitos para agarrar, compreender e dominar. Não vem a palavra alemã Begriff, "conceito" de greifen, "agarrar", "apanhar"? Begreifen é "com-preender", agarrar pelo pensamento. Begriff soa também, no francês, a griffe (garra) e à violência do griffer (arranhar). Os estóicos ilustravam o conhecimento sábio através de uma imagem célebre, narrada por Cícero:
Excepto o sábio, ninguém sabe o que quer que seja, e Zenão provava-o com um gesto. Mostrava a mão, com os dedos estendidos: "Isto é a representação", dizia ele. Depois dobrava levemente os dedos: "Isto, o assentimento". Seguidamente, com a mão completamente fechada, mostrava o punho, declarando que era a compreensão; foi por isso que deu a esta o nome de katalepsis ("tomada", "tomada de posse", por extensão, "acção de agarrar pela inteligência, compreensão"), que não era usado antes. Aproximava depois a mão esquerda do punho cerrado e apertava-o estreitamente e com força: dizia que era ciência que ninguém possui, excepto o sábio.
Opostamente, um mestre do Talmude inaugurava a sua primeira lição com o gesto seguinte: aproximava a mão esquerda do punho cerrado da mão direita e apertava-o bem com todas as suas forças. Dizia que essa era a sabedoria do imbecil, que crê saber e que pensa segurar o mundo nas malhas da sua rede. Na sua segunda lição, libertava o punho direito da mão esquerda, depois abria progressivamente os dedos, como as pétalas de uma flor que se abre para a vida: "Assim floresce a inteligência", dizia. A mão abria-se por completo, os dedos esticados e prontos para o encontro: "Eis a mão feita para as carícias", dizia. "Esta mão é a do sábio que sabe que não sabe nada, mas que conhece o valor do encontro e da dádiva." Para terminar, cruzava as mãos e dizia: "Eis o pássaro da liberdade".
A dança indiana conservou qualquer coisa do mestre talmúdico. De igual modo, o botão do lótus indica o pensamento ainda balbuciante; depois entreabre-se: o espírito liberta-se e descobre já a cor de um céu que faz sinal ao Infinito."
Ouaknin, Les Dix Mandements, Paris, Seuil, 1999, pp.250-251;trad.port. de Gabriela Corte-Real, CL, 2001, pp.217-218.
Excepto o sábio, ninguém sabe o que quer que seja, e Zenão provava-o com um gesto. Mostrava a mão, com os dedos estendidos: "Isto é a representação", dizia ele. Depois dobrava levemente os dedos: "Isto, o assentimento". Seguidamente, com a mão completamente fechada, mostrava o punho, declarando que era a compreensão; foi por isso que deu a esta o nome de katalepsis ("tomada", "tomada de posse", por extensão, "acção de agarrar pela inteligência, compreensão"), que não era usado antes. Aproximava depois a mão esquerda do punho cerrado e apertava-o estreitamente e com força: dizia que era ciência que ninguém possui, excepto o sábio.
Opostamente, um mestre do Talmude inaugurava a sua primeira lição com o gesto seguinte: aproximava a mão esquerda do punho cerrado da mão direita e apertava-o bem com todas as suas forças. Dizia que essa era a sabedoria do imbecil, que crê saber e que pensa segurar o mundo nas malhas da sua rede. Na sua segunda lição, libertava o punho direito da mão esquerda, depois abria progressivamente os dedos, como as pétalas de uma flor que se abre para a vida: "Assim floresce a inteligência", dizia. A mão abria-se por completo, os dedos esticados e prontos para o encontro: "Eis a mão feita para as carícias", dizia. "Esta mão é a do sábio que sabe que não sabe nada, mas que conhece o valor do encontro e da dádiva." Para terminar, cruzava as mãos e dizia: "Eis o pássaro da liberdade".
A dança indiana conservou qualquer coisa do mestre talmúdico. De igual modo, o botão do lótus indica o pensamento ainda balbuciante; depois entreabre-se: o espírito liberta-se e descobre já a cor de um céu que faz sinal ao Infinito."
Ouaknin, Les Dix Mandements, Paris, Seuil, 1999, pp.250-251;trad.port. de Gabriela Corte-Real, CL, 2001, pp.217-218.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005
A Alma de uma Pedra
"Apresenta-se, mostra-se a um japonês um pedregulho. Olha-o, fita-o, estuda-o. Para ele, o pedregulho tem feições, fisionomia individual, implicando a ideia de atributos sentimentais, pois há pedras tristes, pois há pedra sorridentes, pois há pedras amigas, pois há pedras arrogantes: cada pedra tem o seu carácter, talvez pudesse dizer: a sua alma"
Wenceslau de Moraes citado no óptimo artigo de Susana Moreira Marques, "Wenceslau de Moraes. Quando o Ocidente e o Oriente se encontram", Ler nº65, p.87.
Wenceslau de Moraes citado no óptimo artigo de Susana Moreira Marques, "Wenceslau de Moraes. Quando o Ocidente e o Oriente se encontram", Ler nº65, p.87.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2005
Feliz Ano Novo
Hoje, 9 de Fevereiro, é dia de Ano Novo para a grande maioria da população mundial. Desde o Tibete (Losar), passando pela China (ano do Galo), até ao Vietname, a data é efusivamente celebrada. Diga-se que os japoneses preferem a data ocidental, trocando freneticamente postais entre si, como nós fazemos no Natal. "Happy Losar" como dizem os meus amigos tibetanos.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2005
Zeami e o teatro Noh
Voltando ao Japão...Zeami Motokiyo (1363?-1443?) escreveu peças de teatro e foi actor na era do Shogun Ashikaga Yoshimitsu. A sua fama como artista provém do facto de ter estabelecido as bases do teatro Noh no Japão. Não foi ele que o criou, mas o estilo que identificamos com o Noh deriva directamente da sua visão genial. No final da sua vida, tornou-se monge Zen. Noh ou Nô é um drama cantado, mas dificilmente se pode comparar com a ópera ocidental ou mesmo com a "ópera chinesa". Os textos cantados combinam a forma poética e a narrativa. O palco está vazio com duas excepções: uma ponte muito estreita (Hashigakai), através da qual os actores entram, e a pintura de um pinheiro (kagami-ita) no fundo do palco. Segundo a tradição, é através dessa árvore que os kami (deuses) do xintoísmo entram no mundo humano. Esta ideia fez-me lembrar as reflexões de Peter Brook sobre a "estaca" vodu - aquela que, no rito religioso, permite aos deuses africanos retornarem para junto do seu povo. Para Brook, o teatro só está vivo quando consegue conjugar o "teatro sagrado" (holy theater) e o "teatro rude" (rough theater), o invisível e o visível. Mas para o fazer, precisa dessa "estaca", mesmo que seja apenas um mero tapete num palco vazio.
A Moral da História
A "reposta positiva" ao repto de Martha Nussbaum
Sinopse na Amazon:
"In a society increasingly divided about moral values, we need to reflect on the ethics we hold. What do we owe to our children...to our elderly parents...to strangers? Is it always wrong to lie? With whom may we have sex, and who should we marry? Is a leader who takes his country to war responsible for the foreseeable deaths of civilians? Should we create new forms of life? Should we value beauty, even above human suffering? Does morality hold even in the death camps? Are morals relative? Great writers have long wrestled with these questions, often adding depth and a more human dimension than we get from the abstract reasoning of philosophers. In The Moral of the Story, Peter and Renata Singer bring together an engrossing collection of fiction, drama, and poetry that stimulates the reader to think about the perennial questions of ethics. Whether you read this book from cover to cover, or dip in to whatever selections pique your curiosity, you will find yourself absorbed in the stories and situations, and provoked to think again about your own values, as well as about today's controversial moral issues."
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Peter Singer
Sobre a tal homilia...
Este "post" pode ofender alguns amigos meus. Espero sinceramente que isso não suceda...mas ao ouvir, nesta campanha eleitoral, tantas declarações e insinuações sobre um assunto ainda interdito em Portugal, apetece-me dizer com Thich Nhat Hahn, o monge vietnamita proposto por Martin Luther King para Prémio Nobel da Paz, o seguinte:
"Sometimes those discriminating against us act in the name of God, of the truth. We may belong to the third world, or we may belong to a particular race, we may be people of color, we may be gay or lesbian, and we have been discriminated against for thousands of years. So how to work on it, how to liberate ourselves from the suffering of being a victim of discrimination and oppression? In Christianity it is said that God created everything, including man, and there is a distinction made between the creator and the creature. The creature is something created by God. When I look at a rose, a tulip, or a chrysanthemum, I know, I see, I think, that this flower is a creation of God. Because I have been practicing as a Buddhist, I know that between the creator and the created there must be some kind of link, otherwise creation would not be possible. So the chrysanthemum can say that God is a flower, and I agree, because there must be the element "flower" in God so that the flower could become a reality. So the flower has the right to say that God is a flower.
The white person has the right to say that God is white, and the black person also has the right to say that God is black. In fact, if you go to Africa, you’ll see that the Virgin Mary is black. If you don’t make the statue of the Virgin Mary black, it does not inspire people. Because to us the black people, "black is beautiful," so a black person has the right to say that God is black, and in fact I also believe that God is black, but God is not only black, God is also white, God is also a flower. So when a lesbian thinks of her relationship with God, if she practices deeply, she can find out that God is also a lesbian. Otherwise how could you be there? God is a lesbian, that is what I think, and God is gay also. God is no less. God is a lesbian, but also a gay, a black a white, a chrysanthemum. It is because you don’t understand that, that you discriminate.
When you discriminate against the black or the white, or the flower, or the lesbian, you discriminate against God, which is the basic goodness in you."
Thich Nhat Hahn, "Questions and Answers" (20 de Julho de 1998), Plum Village
"Sometimes those discriminating against us act in the name of God, of the truth. We may belong to the third world, or we may belong to a particular race, we may be people of color, we may be gay or lesbian, and we have been discriminated against for thousands of years. So how to work on it, how to liberate ourselves from the suffering of being a victim of discrimination and oppression? In Christianity it is said that God created everything, including man, and there is a distinction made between the creator and the creature. The creature is something created by God. When I look at a rose, a tulip, or a chrysanthemum, I know, I see, I think, that this flower is a creation of God. Because I have been practicing as a Buddhist, I know that between the creator and the created there must be some kind of link, otherwise creation would not be possible. So the chrysanthemum can say that God is a flower, and I agree, because there must be the element "flower" in God so that the flower could become a reality. So the flower has the right to say that God is a flower.
The white person has the right to say that God is white, and the black person also has the right to say that God is black. In fact, if you go to Africa, you’ll see that the Virgin Mary is black. If you don’t make the statue of the Virgin Mary black, it does not inspire people. Because to us the black people, "black is beautiful," so a black person has the right to say that God is black, and in fact I also believe that God is black, but God is not only black, God is also white, God is also a flower. So when a lesbian thinks of her relationship with God, if she practices deeply, she can find out that God is also a lesbian. Otherwise how could you be there? God is a lesbian, that is what I think, and God is gay also. God is no less. God is a lesbian, but also a gay, a black a white, a chrysanthemum. It is because you don’t understand that, that you discriminate.
When you discriminate against the black or the white, or the flower, or the lesbian, you discriminate against God, which is the basic goodness in you."
Thich Nhat Hahn, "Questions and Answers" (20 de Julho de 1998), Plum Village
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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2005
Entre o Céu e a Terra
"Quando entro no templo maravilho-me. A posição da mulher a meu lado, a rezar silenciosamente. De joelhos, sentada sobre os pés, as costas erectas, o pescoço estendido, a cabeça imóvel olhando em frente. Um humano vertical, entre o céu e a terra."
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
domingo, 6 de fevereiro de 2005
O Mal
O excelente blog A Natureza do Mal refere Etty Hillesum que morreu em Auschwitz. Cita-a quando ela nos diz que "o mal está nos outros e está também em nós." O Blog em questão prefere chegar, no entanto, a outra conclusão e afirmar, a partir de uma estranha paráfrase médica do "perdoai-lhes que eles não sabem o que fazem", que "não existe mal" (sic). A meu ver, engana-se redondamente e esquece as palavras fabulosas de Etty Hillesum, plenas de judaísmo, quando nos diz (desculpem o inglês): "I shall try to help You, God, to stop my strength ebbing away, though I cannot vouch for it in advance. But one thing is becoming increasingly clear to me: that you cannot help us, that we must help You to help ourselves. And that is all we can manage these days and also all that really matters; that we safeguard that little piece of you, God, in ourselves. And perhaps in others as well. [12 de Julho de 1942]" (J. Gaarlandt (ed.), An Interrupted Life. Diaries of Etty Hillesum, 1941-1943, Nova Iorque, Pantheon Books,1983, pp.151).
ser uma nuvem levada à deriva pelo vento
"Oito painéis, quatro estações do ano, uma só paisagem desenhada. Perco-me horas na minha pintura preferida do Museu Nacional de Kyoto, se se puder chamar pintura ao que vejo, se ver for o verbo apropriado. O museu está vazio, só um guarda por sala faz-me lembrar que não estou em casa. O guarda-funcionário-fantasma está sentado numa cadeira a um canto e pensa no que eu não adivinho. (...)
Pouco a pouco aprendo a ver os painéis, não de um ponto de vista exterior a eles, de fora deles, sujeito confrontado com um objecto à sua frente. O que faço é ocupar um ponto de vista dentro dos painéis, no interior, olhando-os do seu interior. Os painéis não têm centro, a paisagem completa não tem um centro, uma forma que organize o resto à sua volta. Cada elemento ou conjunto de elementos, perfeitamente figurado, pode transformar-se no centro em volta do qual tudo se compõe e se encontra. Coloco-me no bico do pato na parte do outono, e depois sou a pinha verde do pinheiro dobrado pelo peso da neve do inverno, e depois os olhos do coelho assustado, e salto de flor em flor da ameixieira na primavera que desponta, e depois sou a pequena nuvem branca no céu claro do verão sobre o lago onde vivem peixes, que reflecte, sem saber, a beleza do voo dos gansos selvagens. Ver isto que vejo, fazer isto que faço, não é ficar de fora diante de uma obra e dela ter uma apreensão estética, valorizando a beleza, a técnica, a disciplina. Ver isto que vejo, se o verbo ver fosse ver e a palavra obra a aplicada, é fazer uma viagem pelo interior das estações, apreender intimamente a sucessão dos meses, conhecer onde estamos, sair de mim e ser por momentos pato, pinha verde, flor delicada e frágil prestes a cair, nuvem levada à deriva pelo vento. (...)
O centro está vazio, o centro está em toda a parte. Ando na rua e faço isto, que sempre pude fazer e nunca fiz, e o mundo parece-me novo e mais interessante, como se tivesse caído um véu entre mim e ele, e fôssemos a mesma coisa."
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
Pouco a pouco aprendo a ver os painéis, não de um ponto de vista exterior a eles, de fora deles, sujeito confrontado com um objecto à sua frente. O que faço é ocupar um ponto de vista dentro dos painéis, no interior, olhando-os do seu interior. Os painéis não têm centro, a paisagem completa não tem um centro, uma forma que organize o resto à sua volta. Cada elemento ou conjunto de elementos, perfeitamente figurado, pode transformar-se no centro em volta do qual tudo se compõe e se encontra. Coloco-me no bico do pato na parte do outono, e depois sou a pinha verde do pinheiro dobrado pelo peso da neve do inverno, e depois os olhos do coelho assustado, e salto de flor em flor da ameixieira na primavera que desponta, e depois sou a pequena nuvem branca no céu claro do verão sobre o lago onde vivem peixes, que reflecte, sem saber, a beleza do voo dos gansos selvagens. Ver isto que vejo, fazer isto que faço, não é ficar de fora diante de uma obra e dela ter uma apreensão estética, valorizando a beleza, a técnica, a disciplina. Ver isto que vejo, se o verbo ver fosse ver e a palavra obra a aplicada, é fazer uma viagem pelo interior das estações, apreender intimamente a sucessão dos meses, conhecer onde estamos, sair de mim e ser por momentos pato, pinha verde, flor delicada e frágil prestes a cair, nuvem levada à deriva pelo vento. (...)
O centro está vazio, o centro está em toda a parte. Ando na rua e faço isto, que sempre pude fazer e nunca fiz, e o mundo parece-me novo e mais interessante, como se tivesse caído um véu entre mim e ele, e fôssemos a mesma coisa."
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
Um rio, um sonho e uma viagem
"O que pertence ao corpo é como um rio,
o que pertence à alma é como um sonho e um vapor:
a vida é uma guerra e uma viagem por um país estrangeiro"
Marco Aurélio
o que pertence à alma é como um sonho e um vapor:
a vida é uma guerra e uma viagem por um país estrangeiro"
Marco Aurélio
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