quinta-feira, 31 de março de 2005
A Verdade de Descartes
Segundo o jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, a prestigiada Universidade de Utrecht (Holanda), reabilitou agora, ao fim de três séculos e meio, a filosofia de Descartes. Com efeito, em 17 de Março de 1642, esta Universidade tinha determinado a proibição do estudo do filósofo francês e da sua "nova filosofia". Em termos práticos, a proibição era mais nominal do que real, visto que, desde 1650 (8 anos depois...), Descartes já era efectivamente estudado nessa Universidade. Refira-se que o filósofo francês viveu largos anos da sua vida na tolerante Holanda.
quarta-feira, 30 de março de 2005
Hoje, graças ao Google, todos nós já sabemos que é dia de aniversário do pintor Vincent Van Gogh (30 de Março de 1853). Segundo alguns cientistas, há alguma semelhança entre a misteriosa zona estrelar da Via Láctea V838 Monocerotis e o quadro "Noite Estrelada". Um dia destes - vão ver... - Van Gogh era mesmo um ET!
terça-feira, 29 de março de 2005
A Violência e o Reino dos Céus
Será o reino dos céus próprio dos violentos? Foi essa a hipótese levantada nos dois comentários de "mz" (o último), na defesa que fez do filme de Mel Gibson sobre a Paixão de Cristo. Como sou muito "preguiçoso", vou ripostar lentamente (em vários "posts") a esta concepção. A tese defendida por "mz" diz-nos que a violência dirige-se especificamente em relação ao "Tentador", citando-se Mateus 11,12 para mostrar como, para Jesus, o reino dos céus é dos violentos.
Em primeiro lugar, parece-me inquietante assumir como um dado real a personificação de uma figura maligna. No budismo, também encontramos a figura de "Mara" (literalmente em sânscrito, o "destruidor") que tenta Siddharta Gautama, o futuro Buda, procurando que ele se desvie do caminho traçado (esta cena é também mostrada no filme de Bertolucci). Mas essa história é assumida consensualmente como um mito, o que significa que o "Tentador" é apenas a personificação imaginária de uma instância violenta e negativa presente em todos nós. Se não "desmitologizarmos" as narrativas míticas - como sublinhou Bultmann no âmbito do Cristianismo - corremos o risco de projectarmos noutrem os nossos próprios medos e ódios. Mas mesmo que interiorizemos o problema, mesmo que assumamos a responsabilidade, não me parece que o caminho mais feliz seja o da violência interior. O diálogo íntimo, a meditação, o cultivo do "espírito da paz" parecem-me ser formas mais felizes de lidar com o mal, pela simples razão de que "dissolvem" a "energia negativa" (i.e., a violência) que o alimenta. A não ser assim, corre-se o risco de "lançar achas para a fogueira". Sobre Mateus 11:12, estive a ver o texto grego e eis o que encontrei (entre parênteses, encontra-se uma tradução plausível de cada termo grego...a transliteração, assim como a tradução, foi a melhor que me foi possível:
"de (e) apo (desde) êmera (dias) iôannês (João) baptistês (Baptista) eôs (até) arti (agora) basileia (reino) ouranos (céu) biazô (sofre) kai (e) biastai (violentos/bestas) arpazousin (tomam violentamente) autên (ele)."/ "e desde João Baptista até agora, o reino do céu sofre e os violentos tomam conta dele" (Mt 11,12).
Seria estranho que Jesus estivesse a defender que o "reino dos céus" é próprio de seres bestiais e violentos... Encontro duas explicações prováveis: a violência a que os profetas, a partir de João, são sujeitos (contrariando assim os tempos em que vigorava o espírito da Tora e dos profetas - passagem referida imediatamente a seguir) ou então a percepção de que os zelotas (os defensores de soluções violentas para o reino messiânico) estavam a dominar o novo movimento profético iniciado por João e continuado por Jesus.
Em primeiro lugar, parece-me inquietante assumir como um dado real a personificação de uma figura maligna. No budismo, também encontramos a figura de "Mara" (literalmente em sânscrito, o "destruidor") que tenta Siddharta Gautama, o futuro Buda, procurando que ele se desvie do caminho traçado (esta cena é também mostrada no filme de Bertolucci). Mas essa história é assumida consensualmente como um mito, o que significa que o "Tentador" é apenas a personificação imaginária de uma instância violenta e negativa presente em todos nós. Se não "desmitologizarmos" as narrativas míticas - como sublinhou Bultmann no âmbito do Cristianismo - corremos o risco de projectarmos noutrem os nossos próprios medos e ódios. Mas mesmo que interiorizemos o problema, mesmo que assumamos a responsabilidade, não me parece que o caminho mais feliz seja o da violência interior. O diálogo íntimo, a meditação, o cultivo do "espírito da paz" parecem-me ser formas mais felizes de lidar com o mal, pela simples razão de que "dissolvem" a "energia negativa" (i.e., a violência) que o alimenta. A não ser assim, corre-se o risco de "lançar achas para a fogueira". Sobre Mateus 11:12, estive a ver o texto grego e eis o que encontrei (entre parênteses, encontra-se uma tradução plausível de cada termo grego...a transliteração, assim como a tradução, foi a melhor que me foi possível:
"de (e) apo (desde) êmera (dias) iôannês (João) baptistês (Baptista) eôs (até) arti (agora) basileia (reino) ouranos (céu) biazô (sofre) kai (e) biastai (violentos/bestas) arpazousin (tomam violentamente) autên (ele)."/ "e desde João Baptista até agora, o reino do céu sofre e os violentos tomam conta dele" (Mt 11,12).
Seria estranho que Jesus estivesse a defender que o "reino dos céus" é próprio de seres bestiais e violentos... Encontro duas explicações prováveis: a violência a que os profetas, a partir de João, são sujeitos (contrariando assim os tempos em que vigorava o espírito da Tora e dos profetas - passagem referida imediatamente a seguir) ou então a percepção de que os zelotas (os defensores de soluções violentas para o reino messiânico) estavam a dominar o novo movimento profético iniciado por João e continuado por Jesus.
segunda-feira, 28 de março de 2005
António Franco Alexandre
"Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre."
António Franco Alexandre, Duende
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre."
António Franco Alexandre, Duende
domingo, 27 de março de 2005
Baraka
Baraka, uma palavra comum de diferentes línguas semitas, mas que tem um sentido especial para a tradição sufi, na qual tanto pode significar "bênção" como a experiência da respiração que percorre toda a vida. O realizador do filme, Ron Fricke, comentou: "I really believe that we are connected to everything, that in a sense, I've been invited here to this planet just like you and everyone else has, and life didn't ask anybody to approve of a guest list."
sábado, 26 de março de 2005
"We are now sufficiently advanced to consider resources other than materialistic, but they are tenuous, intangible, and vulnerable to misapplication. They are, in fact, the symbols of spiritual life - a vast impersonal pantheism - transcending the confused myths and prescriptions that are presumed to clarify ethical and moral conduct. (...) In contemplation of the eternal incarnations of the spirit which vibrate in every mountain, leaf, and particle of earth, in every cloud, stone, and flash of sunlight, we make new discoveries on the planes of ethical and humane discernment, approaching the new society at last, proportionate to nature" Ansel Adams
sexta-feira, 25 de março de 2005
Sexta-feira
"Sabemos que a Sexta-feira significa, para os cristãos, o dia da Crucificação. Mas o não-cristão, o ateu, conhece-a também. Conhece a injustiça, o sofrimento interminável, a destruição, o enigma brutal do fim, dimensões que constituem claramente, não apenas a dimensão histórica da condição humana, mas também o tecido quotidiano da nossa existência individual. Conhecemos, de uma forma inelutável, a dor, o fracasso do amor, a solidão que são, ao mesmo tempo, a nossa história e o nosso destino particular. Conhecemos também o Domingo. Para o cristão, esse dia significa uma evocação, ao mesmo tempo garantida e precária, ao mesmo tempo evidente e incompreensível, da ressurreição, de uma justiça e de um amor que venceram a morte. Se não somos cristãos ou crentes, conhecemos este domingo de uma forma análoga. Concebemo-lo como sendo o dia da libertação da inumanidade e da servidão. Procuramos por isso caminhos, terapêuticos e políticos, sociais ou messiânicos. (...) Mas a nossa época é a do longo dia de Sábado. Entre o sofrimento, a solidão, a devastação inexprimível, por um lado, e o sonho da libertação, de renascimento, por outro. Diante da tortura de uma criança, da morte do amor que representa a Sexta-feira, mesmo as maiores formas de arte e de poesia estão quase sem recursos. Na utopia do Domingo, a estética, presumo, não terá mais razão de ser. As apreensões e as figurações que estão em jogo na imaginação metafísica, no poema, na composição musical, que falam da dor e da esperança, da carne que tem o gosto da cinza e do espírito que tem o sabor do fogo, são sempre obras do Sábado. Irromperam da expectativa imensa que é a expectativa do homem. Sem elas, como poderíamos esperar com paciência?"
George Steiner, Presenças Reais. As Artes do Sentido, trad.port., Lisboa, Presença, 1991, p.205
George Steiner, Presenças Reais. As Artes do Sentido, trad.port., Lisboa, Presença, 1991, p.205
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quinta-feira, 24 de março de 2005
Vi finalmente o filme de Gus Van Sant, Gerry, produzido em 2002. Tudo é excelente nesta obra: a realização (Gus Van Sant é um dos realizadores americanos mais criativos), a fotografia belíssima de Harry Savides (lembrando as fotografias de Ansel Adams), a música fabulosa (Für Aline e Spiegel im Spiegel do compositor estoniano Arvo Pärt - já falámos várias vezes sobre ele no "Expresso do Oriente"), as interpretações dos dois Gerrys (Matt Damon e Casey Affleck), os efeitos sonoros impressionantes de Felix Andrew. Estamos em face de um filme minimalista e, como tal, a história é muito fácil de contar: dois jovens, ambos chamados "Gerry", vão fazer um passeio pela "wilderness", pelos campos selvagens, com o objectivo de irem a um determinado local, apenas identificado vagamente como a "coisa" ("the thing"). Deduz-se que esta "coisa" não é nenhum objecto ou local misterioso; é apenas um pretexto de um passeio. Perdem-se e todo o filme não é mais do que a sua caminhada até à exaustão - pois não trouxeram água nem alimentos - através do "vale da morte", o famigerado Death Valley no Oeste americano. Embora não possa confirmar, li, algures, que os diálogos resultaram do improviso dos dois actores. Nada de especial acontece a não ser a desorientação e a caminhada que parece não ter fim. É um misto do Projecto Blair Witch (mas aqui não há propriamente terror) e Esperando Godot (a peça de Samuel Beckett; só que, no filme, o decisivo está na imagem cinematográfica e não no diálogo). É evidente que estes jovens não primam pela auto-estima, visto que o termo "gerrysar" expressa a ideia de estarem "lixados". Quando era jovem, vi a peça de Beckett e poderia estar aqui, horas a fio (é um modo de dizer...:-) , a comentar cada frase, cada cena da peça do escritor irlandês; o que se pode dizer desta narrativa minimalista, para lá de se sublinhar a beleza sublime das imagens? Apenas isto: dois jovens totalmente desorientados, caminham desenfreadamente pelo vale da morte, procurando encontrar salvação no meio de uma terra inegavelmente bela, mas desolada. O que talvez não seja pouco...
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quarta-feira, 23 de março de 2005
Espírito da Paz
Este é o meu comentário ao texto da "mz", que longe de ser um "sermão" é um texto muito interessante, mas inquietante, nomeadamente quando afirma que, para Jesus, o "reino de Deus" é dos "violentos".
Mt 26:52 Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, à espada morrerão.
Lc 6:27 Eu, porém vos digo a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te bater numa das faces oferece-lhe também a outra.
Mt 9:13 Ide, pois, e aprendei o que significa: Compaixão é o que eu quero, e não o sacrifício.
Mt 5:9 Felizes os que procuram a paz entre os homens, porque Deus lhes chamará seus filhos!
Para os budistas, Jesus é um "bodhisattva" (como, aliás, o próprio Siddharta Gautama), palavra difícil, mas que tem um significado muito simples: "bodhisattva" é aquele que nunca entrará no "paraíso" enquanto existir um único ser a viver no "inferno". Sobre a questão da firmeza, recordo as palavras históricas, proferidas por um hindu, Mahatma Gandhi, a um sacerdote cristão: "não é Jesus que vos diz que quando te baterem numa face, devem oferecer a outra?" Frase já dita por Jeremias no Livro das Lamentações (3:30) : "que dê a sua face a quem o fere". Será que a melhor simbolização da firmeza deste "espírito da paz" é o uso da violência (como no filme de Gibson)?
A violência, como resposta em face do mal, nunca será resposta nenhuma, pela simples razão de que o mal é, ele próprio, a violência! E ninguém lutará contra a violência enquanto não estiver em paz consigo próprio.
Mas deixemo-nos de teologias e vamos ao essencial. A meu ver, é-nos dito por Karen Armstrong, num texto citado, por mim, em Fevereiro:
"As Igrejas e as pessoas religiosas em geral esqueceram a própria noção de compaixão. Todas as grandes religiões do mundo insistem que a única base das ideias religiosas, dos símbolos e de qualquer teologia, é a compaixão em relação a todos os seres vivos. O Novo Testamento, os Profetas hebreus e o Corão repetem-no sem cessar. É isto que é a religião. (...) Não se trata de provar a existência de Deus nem de encontrar o Graal para o levar triunfalmente ao Rei Artur. Isso não é a religião. É, sim, abrir o seu coração aos outros, pois só no momento em que nos reconciliamos com os nossos inimigos é que encontramos o divino. As Igrejas esqueceram-se disso, demasiado ocupadas com o seu dogma ou em condenar outros seres humanos que têm crenças diferentes. Dilaceram-se em torno de temas tão ridículos como o de saber se as mulheres devem ascender ao sacerdócio ou sobre qual o melhor tipo de contracepção."
Desculpem o "sermão"...
Mt 26:52 Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, à espada morrerão.
Lc 6:27 Eu, porém vos digo a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te bater numa das faces oferece-lhe também a outra.
Mt 9:13 Ide, pois, e aprendei o que significa: Compaixão é o que eu quero, e não o sacrifício.
Mt 5:9 Felizes os que procuram a paz entre os homens, porque Deus lhes chamará seus filhos!
Para os budistas, Jesus é um "bodhisattva" (como, aliás, o próprio Siddharta Gautama), palavra difícil, mas que tem um significado muito simples: "bodhisattva" é aquele que nunca entrará no "paraíso" enquanto existir um único ser a viver no "inferno". Sobre a questão da firmeza, recordo as palavras históricas, proferidas por um hindu, Mahatma Gandhi, a um sacerdote cristão: "não é Jesus que vos diz que quando te baterem numa face, devem oferecer a outra?" Frase já dita por Jeremias no Livro das Lamentações (3:30) : "que dê a sua face a quem o fere". Será que a melhor simbolização da firmeza deste "espírito da paz" é o uso da violência (como no filme de Gibson)?
A violência, como resposta em face do mal, nunca será resposta nenhuma, pela simples razão de que o mal é, ele próprio, a violência! E ninguém lutará contra a violência enquanto não estiver em paz consigo próprio.
Mas deixemo-nos de teologias e vamos ao essencial. A meu ver, é-nos dito por Karen Armstrong, num texto citado, por mim, em Fevereiro:
"As Igrejas e as pessoas religiosas em geral esqueceram a própria noção de compaixão. Todas as grandes religiões do mundo insistem que a única base das ideias religiosas, dos símbolos e de qualquer teologia, é a compaixão em relação a todos os seres vivos. O Novo Testamento, os Profetas hebreus e o Corão repetem-no sem cessar. É isto que é a religião. (...) Não se trata de provar a existência de Deus nem de encontrar o Graal para o levar triunfalmente ao Rei Artur. Isso não é a religião. É, sim, abrir o seu coração aos outros, pois só no momento em que nos reconciliamos com os nossos inimigos é que encontramos o divino. As Igrejas esqueceram-se disso, demasiado ocupadas com o seu dogma ou em condenar outros seres humanos que têm crenças diferentes. Dilaceram-se em torno de temas tão ridículos como o de saber se as mulheres devem ascender ao sacerdócio ou sobre qual o melhor tipo de contracepção."
Desculpem o "sermão"...
segunda-feira, 21 de março de 2005
A Paixão de Mel Gibson
Ontem, decidi finalmente ver o polémico filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo. Vários amigos, alguns deles católicos, alertaram-me para a natureza integrista (=fundamentalista?) e anti-semita do filme. Se a memória não me falha, o Padre Stilwell, Presidente da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, sublinhou a interpretação muito sui generis do Cristianismo de Mel Gibson, visão próxima do culto, ainda hoje praticado em muitos países sul-americanos, ao poder redentor do "Sagrado Coração de Jesus". Outros ainda, sublinharam que Gibson utilizou o nosso fascínio doentio pela violência para abordar a paixão de Cristo e, deste modo, obter um bom rendimento comercial com a sua obra. Duvido sinceramente que tenha sido essa a intenção do realizador, mas, como se costuma dizer, as obras ultrapassam sempre os objectivos dos seus criadores.
Apesar de todas estas advertências, decidi vê-lo, mais não seja porque acho importante que todos nós, qualquer que seja a nossa crença, pensemos nos múltiplos significados associados a essa "passagem" que é a Páscoa. O começo do filme pareceu-me prometedor: as imagens iniciais são de grande beleza e a descrição da angústia humana de Jesus, da sua solidão, é muito bem conseguida psicológica e visualmente. Segundo Kierkegaard, é a angústia e a solidão vivida nos jardins de Getsemani que constitui um dos momentos cruciais da identidade religiosa cristã. Mel Gibson, apreendendo a analogia, mesmo que inversa, entre este jardim da angústia e o edénico, introduz uma figura demoníaca que dialoga, naquele momento, com Jesus. A dado momento, uma serpente aproxima-se de Jesus, fazendo novamente eco da analogia bíblica. Qual é a atitude de Jesus no filme? Esmagar pura e simplesmente a serpente com os seus pés... o significado alegórico é óbvio e trivial, mas o seu efeito simbólico é de tal modo terrível que decidi, nesse preciso instante, terminar o visionamento do filme. Nesta paixão de Gibson, a violência é a última palavra contra o mal. E recordei-me de um outro filme, o Pequeno Buda de Bertolucci que nos conta um mito tradicional do budismo. Uma enorme serpente, a "cobra" indiana, com a sua enorme cabeça, protege Siddharta Gautama, o futuro Buda, de uma chuva torrencial, permitindo que este último medite sobre as razões do sofrimento no mundo. Na cena atrás descrita, Gibson revelou que talvez estivesse a falar da sua paixão, mas não daquela que deu sentido à bondade e à compaixão que animaram a vida desse judeu, nascido em Betselem, Yeshua ben Yosef, Jesus filho de José (e, já agora, também de Miryam).
Apesar de todas estas advertências, decidi vê-lo, mais não seja porque acho importante que todos nós, qualquer que seja a nossa crença, pensemos nos múltiplos significados associados a essa "passagem" que é a Páscoa. O começo do filme pareceu-me prometedor: as imagens iniciais são de grande beleza e a descrição da angústia humana de Jesus, da sua solidão, é muito bem conseguida psicológica e visualmente. Segundo Kierkegaard, é a angústia e a solidão vivida nos jardins de Getsemani que constitui um dos momentos cruciais da identidade religiosa cristã. Mel Gibson, apreendendo a analogia, mesmo que inversa, entre este jardim da angústia e o edénico, introduz uma figura demoníaca que dialoga, naquele momento, com Jesus. A dado momento, uma serpente aproxima-se de Jesus, fazendo novamente eco da analogia bíblica. Qual é a atitude de Jesus no filme? Esmagar pura e simplesmente a serpente com os seus pés... o significado alegórico é óbvio e trivial, mas o seu efeito simbólico é de tal modo terrível que decidi, nesse preciso instante, terminar o visionamento do filme. Nesta paixão de Gibson, a violência é a última palavra contra o mal. E recordei-me de um outro filme, o Pequeno Buda de Bertolucci que nos conta um mito tradicional do budismo. Uma enorme serpente, a "cobra" indiana, com a sua enorme cabeça, protege Siddharta Gautama, o futuro Buda, de uma chuva torrencial, permitindo que este último medite sobre as razões do sofrimento no mundo. Na cena atrás descrita, Gibson revelou que talvez estivesse a falar da sua paixão, mas não daquela que deu sentido à bondade e à compaixão que animaram a vida desse judeu, nascido em Betselem, Yeshua ben Yosef, Jesus filho de José (e, já agora, também de Miryam).
domingo, 20 de março de 2005
sábado, 19 de março de 2005
Questões imprudentes
Hoje, numa sapataria, questionei a empregada da loja sobre o melhor produto para limpar os meus sapatos... Resposta: "óleo de foca". Devo ter feito uma cara tão escandalizada que ela meteu "as mãos pelos pés" e me disse que não era bem "foca"... para a serenidade de ambos, achámos por bem não aprofundar a origem desse eventual "sebo". Ouvi falar que existe um site de vegetarian shoes. Ao que parece os sapatos são bons e, apesar do nome, não comem alfaces...
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Serei único?
Depois do reboliço das compras num hipermercado ao Sábado, era mesmo este o local onde gostava de estar. Beber um chá, meditar em silêncio e em paz num espaço vazio. Todos nós, aqui no Ocidente, nos queixamos do stress e da confusão. Por que razão não existem espaços assim, mesmo à mão, que nos fizessem esquecer a confusão diária? Será que, afinal, gostamos mesmo de stress e não suportamos o silêncio?
Para quem gosta realmente da dança contemporânea, recomendo o filme/DVD, "A Companhia" (The Company, 2003) do realizador, já octagenário, Robert Altman. O filme é, no essencial, uma homenagem a esta forma de criação artística. O drama, propriamente dito, tem um papel secundário, satisfazendo apenas o nosso desejo de surpreender o modo de vida dos dançarinos fora de palco. A única excepção - em termos de interesse dramático - é a figura de Ry intepretada pela actriz canadiana Neve Campbell. Algumas das coreografias apresentadas são sublimes; como são deliciosas as notas irónicas sobre o modo como as ideias artísticas são implementadas. É difícil por exemplo, esquecer, sem algum sorriso, a ideia da dança cósmica do deus Xiva/Shiva que, como uma serpente cósmica, vai comendo e regurgitando os dançarinos...
sexta-feira, 18 de março de 2005
Albert Einstein e o Judaísmo
O Nuno Guerreiro da Rua da Judiaria vai-me perdoar, mas eu não consigo resistir a copiar um texto de Albert Einstein, por ele citado, sobre a mundividência judaica.
"Uma mundivisão judaica, no sentido filosófico, no meu entender não existe. O Judaísmo, penso eu, refere-se quase exclusivamente a uma postura moral perante a vida.
O Judaísmo parece-me ser mais a essência da atitude perante a vida que reside no povo judeu do que a lei contida na Torá e interpretada no Talmude. Torá e Talmude são para mim apenas os testemunhos mais importantes da vigência da atitude perante a vida em tempos idos.
A essência da ideologia de vida dos judeus parece-me ser esta: A afirmação da vida de todas as criaturas. A vida do indivíduo só tem sentido no serviço de embelezamento e enobrecimento da vida em todos os seres vivos.
A vida é sagrada, isto é o valor máximo do qual dependem todas as outras avaliações. A santificação da vida supra-individual traz consigo a adoração de tudo o que é espiritual, um traço especialmente característico da tradição judaica.
O judaísmo não é uma fé. O Deus judeu é uma negação da superstição, um resultado imaginário da sua negação. É também uma tentativa de basear uma lei moral no temor, uma tentativa lamentável. Mas parece-me que a forte tradição moral no povo judeu se soltou largamente deste temor. Também é manifesto que “servir Deus” foi equiparado a “servir o outro”. Para isso lutaram incansavelmente os melhores do povo judeu, especialmente os profetas.
Assim o Judaísmo não é, principalmente, uma religião transcendente, tendo só a ver com a nossa vida experienciada e por assim dizer palpável, e com nenhuma outra coisa. Parece-me por isso duvidoso que possa ser chamado uma “religião” no sentido corrente do termo, ainda porque não é exigido aos judeus nenhuma “fé”, só a santificação da vida no sentido supra-pessoal.
Mas encontra-se ainda algo mais na tradição judaica, que se revela esplendorosamente em alguns salmos, uma espécie de alegria embriagada e um espanto sobre a beleza e incompreensível sublimidade deste mundo, da qual o homem somente consegue alcançar uma fraca noção. É o sentimento de onde também a verdadeira investigação obtém a suas forças, mas que igualmente parece exprimir-se no canto dos pássaros. Isto parece-me ser o conteúdo mais sublime da ideia de Deus. (sublinhados nossos)
Será isto característico para o Judaísmo? Vive ele também sob outro nome? De forma pura não vive em nenhum lado, também não no Judaísmo, onde muito culto da letra obscurece a pura doutrina. Mas vejo mesmo assim no Judaísmo uma das suas realizações mais vitais e puras. Isto vale especialmente para o princípio da santificação da vida.
É notável que na oração da santificação do Shabbat também os animais são expressamente incluídos, tanta é a força e a exigência do ideal da solidariedade para com todo o ser vivo. Ainda mais, exprime-se a exigência da solidariedade de todos os homens, e não é um acaso que as doutrinas socialistas tiveram maioritariamente a sua origem em judeus.
O quanto da consciência da santidade da vida está viva no povo judeu, exemplifica-se muito bem numa pequena frase, que Walther Rathenau uma vez me mencionou em conversa: “Se um judeu diz que vai à caça por prazer, está a mentir.” Não se pode exprimir de forma mais simples a consciência da santidade e solidariedade com a vida."
"Uma mundivisão judaica, no sentido filosófico, no meu entender não existe. O Judaísmo, penso eu, refere-se quase exclusivamente a uma postura moral perante a vida.
O Judaísmo parece-me ser mais a essência da atitude perante a vida que reside no povo judeu do que a lei contida na Torá e interpretada no Talmude. Torá e Talmude são para mim apenas os testemunhos mais importantes da vigência da atitude perante a vida em tempos idos.
A essência da ideologia de vida dos judeus parece-me ser esta: A afirmação da vida de todas as criaturas. A vida do indivíduo só tem sentido no serviço de embelezamento e enobrecimento da vida em todos os seres vivos.
A vida é sagrada, isto é o valor máximo do qual dependem todas as outras avaliações. A santificação da vida supra-individual traz consigo a adoração de tudo o que é espiritual, um traço especialmente característico da tradição judaica.
O judaísmo não é uma fé. O Deus judeu é uma negação da superstição, um resultado imaginário da sua negação. É também uma tentativa de basear uma lei moral no temor, uma tentativa lamentável. Mas parece-me que a forte tradição moral no povo judeu se soltou largamente deste temor. Também é manifesto que “servir Deus” foi equiparado a “servir o outro”. Para isso lutaram incansavelmente os melhores do povo judeu, especialmente os profetas.
Assim o Judaísmo não é, principalmente, uma religião transcendente, tendo só a ver com a nossa vida experienciada e por assim dizer palpável, e com nenhuma outra coisa. Parece-me por isso duvidoso que possa ser chamado uma “religião” no sentido corrente do termo, ainda porque não é exigido aos judeus nenhuma “fé”, só a santificação da vida no sentido supra-pessoal.
Mas encontra-se ainda algo mais na tradição judaica, que se revela esplendorosamente em alguns salmos, uma espécie de alegria embriagada e um espanto sobre a beleza e incompreensível sublimidade deste mundo, da qual o homem somente consegue alcançar uma fraca noção. É o sentimento de onde também a verdadeira investigação obtém a suas forças, mas que igualmente parece exprimir-se no canto dos pássaros. Isto parece-me ser o conteúdo mais sublime da ideia de Deus. (sublinhados nossos)
Será isto característico para o Judaísmo? Vive ele também sob outro nome? De forma pura não vive em nenhum lado, também não no Judaísmo, onde muito culto da letra obscurece a pura doutrina. Mas vejo mesmo assim no Judaísmo uma das suas realizações mais vitais e puras. Isto vale especialmente para o princípio da santificação da vida.
É notável que na oração da santificação do Shabbat também os animais são expressamente incluídos, tanta é a força e a exigência do ideal da solidariedade para com todo o ser vivo. Ainda mais, exprime-se a exigência da solidariedade de todos os homens, e não é um acaso que as doutrinas socialistas tiveram maioritariamente a sua origem em judeus.
O quanto da consciência da santidade da vida está viva no povo judeu, exemplifica-se muito bem numa pequena frase, que Walther Rathenau uma vez me mencionou em conversa: “Se um judeu diz que vai à caça por prazer, está a mentir.” Não se pode exprimir de forma mais simples a consciência da santidade e solidariedade com a vida."
quinta-feira, 17 de março de 2005
Ainda falamos nós em espanto filosófico!!! Olhem para estes olhos! Mais uma excelente fotografia da Webshots .
Shoah
Aquilo que escrevi sobre a Shoah (conhecido no Ocidente como o Holacausto nazi) suscitou, como podem ver, alguma controvérsia. Como considero este tema capital no âmbito da filosofia da história, retorno a ele. É um facto inegável e infelizmente trivial que já sucederam crimes horríveis ao longo da história da humanidade. As contínuas invasões de todo o mundo civilizado (islâmico, europeu, indiano, chinês) por hordas de mongóis atingiram níveis de violência e de crueldade que transcenderam o pior que a nossa imaginação pode representar. E os mongóis até eram tolerantes...O genocídio de povos não é algo de novo na história (lembrem-se dos arménios dizimados pela Turquia, dos tibetanos pela China, já para não referir do recente conflito na Jugoslávia e no Sudão). Os Khmers vermelhos no Cambodja condenaram à morte - directa ou indirectamente - um terço da população daquele país fabuloso. Os crimes do "pai Estaline" afectaram pela morte milhões de pessoas. A guerra civil no Ruanda assumiu proporções inimagináveis com a cumplicidade e o silêncio de todos nós.
Se assim é, o que é há de único no Holocausto nazi? Terem sido os judeus e os ciganos os bodes expiatórios de um regime totalitário? Qualquer regime totalitário cria os seus bodes expiatórios, pois só pode sobreviver com eles...
O que há de ÚNICO na Shoah é que o extermínio foi realizado em nome da ciência (a tal eugenia fundada nos conhecimentos de uma genética a dar os seus primeiros passos), da arte (com a batuta do genial Wagner, o grande compositor alemão que, um dia, disse dos judeus: "é pena que eles não tenham ardido todos", quando um incêndio ceifou a vida de dezenas de judeus numa sinagoga), da filosofia (será preciso recordar as "maravilhosas" frases de Hegel, de Schopenhauer, de Nietzsche, de Spengler sobre a necessidade de erradicar os judeus e o judaísmo da nossa civilização)? A Europa que realizou a Shoah não era uma região primitiva e bárbara. O que faz da Shoah um caso ÚNICO é que foi a nossa Civilização que cometeu um dos actos mais horríveis da história. O que me assusta na Shoah não é a crueldade de algum guarda psicótico nazi; o que me assusta na Shoah é aquilo que assustou Hannah Arendt, a saber, a "banalidade do mal", bem personificada, aliás, em Eichmann. Quando Eichmann diz que sempre gostou dos judeus não estava, a meu ver, a mentir. Para quê mentir, quando já não tinha nada a perder? Os principais dirigentes nazis (mesmo aqueles que dirigiram alguns dos piores campos de extermínio) não eram pessoas incultas, sem inteligência, sem formação filosófica e artística...e, no entanto, foram capazes de condenar milhões de crianças à morte.
George Steiner dizia que a existência de um Schubert *talvez* nos possa redimir a todos...talvez! Mas duvido, pois é o mesmo Steiner que se pergunta como é que alguém pode tocar maravilhosamente Beethoven à noite e exterminar crianças no dia seguinte. De uma forma fria, racional, calculista, com o mínimo de confusões possíveis... É essa a "razão" que se esquece das pessoas como fins em si mesmos. Se há algo de semelhante à Shoah nazi, só me recordo da decisão de lançar duas bombas atómicas sobre a população civil de Hiroshima e de Nagasaki. Encontramos aí a mesma lógica, fria, racional que não se importa que tudo vá pelos ares desde que se esteja convicto de "ter razão".
Se assim é, o que é há de único no Holocausto nazi? Terem sido os judeus e os ciganos os bodes expiatórios de um regime totalitário? Qualquer regime totalitário cria os seus bodes expiatórios, pois só pode sobreviver com eles...
O que há de ÚNICO na Shoah é que o extermínio foi realizado em nome da ciência (a tal eugenia fundada nos conhecimentos de uma genética a dar os seus primeiros passos), da arte (com a batuta do genial Wagner, o grande compositor alemão que, um dia, disse dos judeus: "é pena que eles não tenham ardido todos", quando um incêndio ceifou a vida de dezenas de judeus numa sinagoga), da filosofia (será preciso recordar as "maravilhosas" frases de Hegel, de Schopenhauer, de Nietzsche, de Spengler sobre a necessidade de erradicar os judeus e o judaísmo da nossa civilização)? A Europa que realizou a Shoah não era uma região primitiva e bárbara. O que faz da Shoah um caso ÚNICO é que foi a nossa Civilização que cometeu um dos actos mais horríveis da história. O que me assusta na Shoah não é a crueldade de algum guarda psicótico nazi; o que me assusta na Shoah é aquilo que assustou Hannah Arendt, a saber, a "banalidade do mal", bem personificada, aliás, em Eichmann. Quando Eichmann diz que sempre gostou dos judeus não estava, a meu ver, a mentir. Para quê mentir, quando já não tinha nada a perder? Os principais dirigentes nazis (mesmo aqueles que dirigiram alguns dos piores campos de extermínio) não eram pessoas incultas, sem inteligência, sem formação filosófica e artística...e, no entanto, foram capazes de condenar milhões de crianças à morte.
George Steiner dizia que a existência de um Schubert *talvez* nos possa redimir a todos...talvez! Mas duvido, pois é o mesmo Steiner que se pergunta como é que alguém pode tocar maravilhosamente Beethoven à noite e exterminar crianças no dia seguinte. De uma forma fria, racional, calculista, com o mínimo de confusões possíveis... É essa a "razão" que se esquece das pessoas como fins em si mesmos. Se há algo de semelhante à Shoah nazi, só me recordo da decisão de lançar duas bombas atómicas sobre a população civil de Hiroshima e de Nagasaki. Encontramos aí a mesma lógica, fria, racional que não se importa que tudo vá pelos ares desde que se esteja convicto de "ter razão".
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quarta-feira, 16 de março de 2005
Bernard Safran
Safran é um autêntico "alien" na pintura contemporânea. Salvo algumas excepções - e datadas pelo neo-realismo - a pintura já não está interessada em ser a irmã menor da fotografia. No entanto, o estilo de pintura cultivado por este artista americano, "recentemente" falecido (1995), é um caso único de sucesso, talvez por se decifrar na sua obra um desejo nostálgico por um mundo que se perdeu para sempre.
terça-feira, 15 de março de 2005
Yad Vashem
Pintura de David Olère, "Punido no Bunker", Museu Yad Vashem. A Shoah, a "catástrofe" - cuja tradução por Holocausto apenas se aceita por tradição (afinal, o Holocausto é um sacrifício religioso) - é um evento único, sem paralelo na história da humanidade. Aqui não conta a aritmética dos números, nem a brutalidade dos algozes. A Shoah é a única pois é feita em nome da razão, dessa razão fria, totalitária, calculista que esquece a própria ideia de pessoa como um fim em si mesmo. A Shoah é única pois nasceu no centro da Europa, no coração da Alemanha, na nação que nos ofereceu a música de Bach e de Wagner, a literatura de Goethe e de Hölderlin, a filosofia de Leibniz, de Kant e de Heidegger. E, deste modo, deixa-nos perante Deus sem perdão...
segunda-feira, 14 de março de 2005
Verbalizando a consciência de si
"A linguagem, com as suas palavras e frases, (...) é uma conversão de imagens não linguísticas que representam entidades, eventos, relações e inferências. Se a linguagem funciona em relação ao si e à consciência do mesmo modo que funciona para todas as outras coisas, ou seja, simbolizando em palavras e frases aquilo que começa por existir sob uma forma não verbal, então deverá existir um si (self) não verbal e um conhecimento não verbal para os quais as palavras «eu» e ««mim» ou a frase «eu conheço» constituem as traduções apropriadas, em qualquer linguagem. Julgo que é inteiramente legítimo pegar na frase «eu sei» e deduzir, a partir dela, a presença duma imagem não verbal de conhecimento centrada num si que precede e motiva essa frase verbal.
A ideia de que o si e a consciência deveriam emergir após a linguagem e de que seriam uma construção directa da linguagem não parece ser correcta."
António R.Damásio, O Sentimento de Si, p.134
A ideia de que o si e a consciência deveriam emergir após a linguagem e de que seriam uma construção directa da linguagem não parece ser correcta."
António R.Damásio, O Sentimento de Si, p.134
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domingo, 13 de março de 2005
sábado, 12 de março de 2005
A Consciência e a Linguagem
"Nos tempos em que estudava medicina e neurologia, lembro-me de perguntar a algumas das pessoas mais sábias que me rodeavam como é que produzíamos a mente consciente. Curiosamente, a resposta era sempre a mesma: o segredo está na linguagem. Diziam-me que as criaturas sem linguagem estavam limitadas à sua ignorante existência, ao contrário de nós, felizardos humanos, a quem a linguagem permitia conhecer. A consciência era uma interpretação verbal dos processos mentais em curso. (...) Esta resposta pareceu-me sempre muito simples, simples demais (...) E a resposta não só era simples, mas também improvável, dado aquilo que me era dado ver sempre que visitava o Jardim Zoológico. Nunca acreditei na resposta e agrada-me muito nunca ter acreditado."
António R. Damásio, O Sentimento de Si, p.133; ed.ingl. p.106
P.S. Este post é dedicado aos meus blogs "irmãos", Papoila procria, A Fonte do Horácio e Púrpura Rosa. Algo me diz que Divas & Contrabaixos e outros blogs também o compreendem...;-)
António R. Damásio, O Sentimento de Si, p.133; ed.ingl. p.106
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sexta-feira, 11 de março de 2005
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