Constantemente encontramos a afirmação segunda a qual "identidade pessoal" e "identidade narrativa" são uma e a mesma coisa. Esta identificação explica-se, em grande parte, devido ao sucesso da palavra "narrativa" no léxico contemporâneo. Este termo é utilizado em todos os domínios, desde a neurobiologia até à economia.
Embora esta proliferação de "narrativas" tenha o seu quê de irónico - pela simples razão de que a chamada "condição pós-moderna" é, por definição, uma desconfiança em face do poder legitimador das "grandes narrativas", - esta tendência até poderia ser um bom sinal, ao traduzir a percepção da natureza
temporal de todos os aspectos fundamentais da nossa vida. Receio, no entanto, que seja mais um dos inúmeros
sound bites que hoje ecoam por todo o lado.
A "narrativa" como estereótipo é bem evidente na identificação apressada entre os conceitos de identidade pessoal e de identidade narrativa. Se olharmos com atenção para os dois filósofos que maior significado deram à função da narrativa na questão da identidade pessoal - a saber, o escocês Alasdair MacIntyre (um dos grandes teóricos da "ética das virtudes") e o francês Paul Ricoeur - em nenhum deles encontramos essa equivalência. Importa frisar que os dois autores defendem a importância da narrativa por razões bem diferentes. Neste post, procurarei mostrar a posição de MacIntyre.
Este autor está essencialmente interessado no poder que a narrativa confere à inteligibilidade da identidade pessoal. Em termos polémicos, quer demarcar-se da tese sartreana, expressa na
Náusea, de que a narrativa é uma "falsificação" da vida. Segundo "Antoine Roquentin", o personagem central do romance de Sartre, nós estamos sempre a contar histórias sobre nós e os outros, mas isso não é mais do que uma auto-ilusão. "É preciso escolher: viver ou narrar", diz-nos Sartre nesta obra. MacIntyre rejeita esta ideia, ironizando com o facto do filósofo francês narrar no romance
A Náusea a história de "Roquentin" para mostrar que não existem "histórias verdadeiras". Segundo MacIntyre, não é possível dar inteligibilidade a uma acção sem a inscrever num contexto narrativo. O exemplo do "pato histriónico", citado num post recente, traduz bem essa vertente; uma acção, por mais básica que seja, só é inteligível num quadro narrativo. Daí que as "narrativas não sejam obra de poetas, dramaturgos e romancistas reflectindo sobre eventos que só têm ordem narrativa através da forma que lhe é dada pelo bardo ou pelo escritor; a forma narrativa não é um disfarce ou uma decoração." (
After Virtue) Pelo contrário, a narrativa é a própria forma como vivemos: sonhamos, acreditamos, desesperamos, aprendemos, odiamos, etc, pela nossa capacidade de dar inteligibilidade, i.e. de dar sentido narrativo aos múltiplos factos que vivemos. Os factos não são em si narrativos, mas ganham inteligibilidade numa determinada narrativa. Do mesmo modo, só conseguimos compreender uma sociedade, mesmo a nossa, através das suas narrativas fundadoras. "A Mitologia, no seu sentido original, está no coração das coisas. Vico tinha razão assim como Joyce."
MacIntyre reflecte, então, no poder que narrativa tem sobre a identidade pessoal. Segundo ele, não é a continuidade psicológica que permite legitimar a nossa identidade pessoal. Apenas a narrativa o consegue conferindo contexto e sentido à experiência que cada um tem de si próprio. Mas ele sublinha que "não est(á) a argumentar que os conceitos de narrativa ou de inteligibilidade são
mais fundamentais do que o da identidade pessoal". O que ele argumenta é que a narrativa confere unidade e inteligibilidade à experiência singular que cada tem da sua própria vida. Em termos simples, pode-se dizer que, para este autor, a narrativa dá sentido à nossa singularidade como pessoas, à nossa identidade pessoal, ao sentimento de si. A minha vida singular não só tem uma história da qual sou, em parte responsável, como se entrecruza constantemente com as histórias da vida de outras pessoas singulares. Por sua vez, a vida pessoal inscreve-se no contexto de uma "narrativa de busca" (
narrative quest). Mas busca de quê? O filósofo é claro em afirmar que o objecto da busca não é semelhante ao ouro dos mineiros. Para MacIntyre, a "busca" deve ser antes entendida como uma "educação do carácter" através do conhecimento de si próprio e da realização do bem, por mais trágica que essa busca seja.
Numa só frase: narrativa e identidade pessoal são conceitos diferentes para MacIntyre, mas a unidade narrativa torna a nossa identidade pessoal mais substantiva, com maior sentido. Se quiserem uma imagem, a identidade pessoal é a nossa nudez; as narrativas são a roupa que não só vestimos como incarnamos. Mas isso não significa que o hábito faça o monge; protege-o, no entanto, do frio...