terça-feira, 29 de janeiro de 2008
Um estranho sonho
Ontem tive um sonho estranho. Foi um sonho filosófico, mas como todos os sonhos muito imagético. Via sequências de números passando vertiginosamente à minha frente. Foi um sonho a preto e branco, em que os números surgiam a branco sobre um fundo preto. No final daquela sequência de números - e ainda antes de acordar - surgiu-me claro como água o que passo a dizer:
Tudo o que existe tem uma causa. Nada existe que não seja efeito de outra coisa. Será, assim, possível falar-se racionalmente de uma causa primeira? Imaginemos que numerávamos sequencialmente um conjunto de efeitos e suas respectivas causas. Por exemplo, o evento 8 teria como causa o evento 7, este último como causa o evento 6, e assim por diante. Será que poderíamos chamar 1 à primeira causa? Não seria lógico perguntarmo-nos sobre o que tinha causado 1? Por que razão parar num 1? É, aliás, essa a crítica de Bertrand Russell ao argumento cosmológico da existência de Deus formulado por Aquino. Numa primeira análise, o argumento diz o seguinte: tudo tem uma causa, logo há uma causa primeira, uma causa incausada. Para B.R. este argumento era absurdo porque refutava na conclusão (há uma causa incausada) o que afirmava nas premissas (tudo tem uma causa).
Mas será que São Tomás tinha em mente a primeira causa como sendo o 1 de uma sequência de causas e efeitos? O meu sonho diz que não. A primeira causa refere-se àquela que põe em movimento a própria sequência de causas e efeitos. Voltando a utilizar a analogia dos números, a causa primeira é a expressão do que provoca a passagem radical, abrupta, do 0 a 1. Do 0 nada pode suceder. O 1 tem a mesma natureza do que outros números, apenas diferenciando-se por não se poder regredir mais. Se quisermos um outro tipo de analogia - agora física - o 1 é como a singularidade do "big bang". A causa primeira é o que permite que em vez do 0 exista uma sequência de 1,2,3,...
O meu sonho disse-me que só existem existem duas teorias racionais sobre o mundo: a de São Tomas ao defender que existe uma causa primeira, a que ele chama Ser ou Deus. A segunda é a de Espinosa (Spinoza) que defende que a Natureza ou Deus é causa de si. Racionalmente não vejo outras hipóteses. Não tem, por exemplo, nenhum sentido afirmar-se que do nada, através do nada, surgiu algo a que se chama mundo físico.
Como decidir entre São Tomás e Espinosa? As duas teorias filosóficas são tão coerentes e racionais uma como outra. Em função do que se conhece dos factos, a do São Tomás até é a mais credível pois tudo indica que o universo não é eterno. Mas Espinosa talvez argumentasse que, se assim é, provavelmente a natureza é composta por um número infinito de mundos do qual só conhecemos um.
E assim sonhei. Como todos os sonhos, absurdo, dirão muitos!!
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4 comentários:
Excelente post. É uma das questões que mais me interessa. Acho, como B.R., que o argumento de tudo ter uma causa implica uma regressão ao infinito e não a paragem no 1. Mas também acredito que é possível, como Bhixma (e como penso que Leibniz), que a causa primeira seja a que põe em movimento as causas e que ela mesma está fora da cadeia de causas e efeitos. É a questão das questões. Lindo seria alguém provar racionalmente a existência dessa "causa" e o que ela é. No livro "A física do cristianismo", o autor pensa conseguir isso através de um argumento matemático que pouco percebi e pouco me interessou. Acredito que somos capazes de lá ir pela experiência (ex. meditação, reflexão) e pela linguagem não matemática.
Um abraço, Nuno.
Ou o mundo(s) é causa sui ou é causado por outrem (o que quer que seja). Só existem racionalmente, a meu ver, estas duas hipóteses. Deste modo, ou somos "panteístas" ou "teístas". Em termos racionais não é possível decidir por nenhuma destas duas hipóteses. Mas ambas as teses são perfeitamente legítimas. Existem depois múltiplas variantes em cada uma destas duas hipóteses. A mais interessante - quase oriental - das variações do tomismo é a de Mestre Eckhart. O Ser criador é intrínseco a tudo o que existe e, como tal, a cada um de nós. No campo do panteísmo, a variação mais conhecida é a de Hegel: nós somos a consciência de uma Natureza que se desconhece.
E se todos os mecanismos deste mundo têm uma causa, também o tem o nosso livre arbitrio, que, no entanto, assim deixaria de o ser...Gostava de acreditar que tenho vontade...Talvez o mundo não seja todo racional. Talvez tenha uma pitada de aleatório inexplicável.
Mas ainda dentro do mundo racional, existem mecanismos que têm uma causa, mas que não têm um ínicio, sendo são circulares, como por exemplo o mecanismo associado à respiração de uma planta.
É uma questão interessante na medida em que a liberdade - se ela existir (e acredito que sim) -consiste na interrupção de uma determinada sequência causal e na eclosão de uma outra.
Algumas observações:
1. 'racional' significa no contexto deste post 'o que é pensado com justeza', 'bem pensado', 'coerente'. Racional é o que tem 'pernas para andar'.
2. A experiência da liberdade é certamente a principal razão pela qual a tradição religiosa considera que o homem foi feita à imagem e semelhança de Deus.
3. A liberdade - se ela existir - também tem as suas razões. Daí falar-se de intenções, de motivações,... Mesmo que a decisão seja irracional não deixa de ter uma razão para ser tomada.
4. Ao se referir a respiração de uma planta julgo que se procurava sublinhar o carácter holítstico do processo. Mas todos os fenómenos deste mundo, sem excepção, têm um início e um fim...
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