domingo, 2 de novembro de 2008

Identidades confusas (2)


Outro erro muito comum na análise do problema da identidade pessoal consiste em identificar a identidade de uma pessoa com a sua personalidade. Deste modo, a questão sobre a identidade pessoal seria do domínio da psicologia.
Que existem problemas psicológicos, reais e sérios, no âmbito da identidade psíquica parece-me ser uma afirmação trivial e verídica. Só que o problema da identidade pessoal não consiste em saber se temos ou não a mesma personalidade ao longo do tempo. Do mesmo modo que o corpo, a nossa personalidade vai-se alterando gradualmente e isso não impede que não se possa falar de uma mesma e única pessoa. Em casos dramáticos (traumas, acidentes, etc.) a alteração da personalidade e do carácter pode ser radical. Uma pessoa de carácter egoísta passa a ser compassiva e altruísta ou vice-versa. Esses casos foram estudados com profundidade por António Damásio no Erro de Descartes. Mas se estas alterações se podem processar sem modificação do sentimento de si, então o carácter e o conjunto de crenças de uma pessoa não é um critério para a sua identidade pessoal.
Imaginemos, por exemplo, que um dia alguém chamado "Maria" - pessoa muito calma e contemplativa - acorda e começa a ter o comportamento muito activo e nervoso da sua irmã "Marta". Para grande surpresa de todos, "Maria", em termos psicológicos, passou a ter todos os traços de carácter da "Marta". Será que isso altera a sua identidade pessoal? Se acontecesse algo similar a "Marta" - subitamente ficaria com o carácter de "Maria" - poder-se-ia dizer que teriam trocado de identidade pessoal? Parece-me evidente que não. "Maria" e "Marta" reconhecer-se-iam como sendo as mesmas pessoas mesmo que estranhamente as suas personalidades se tivessem modificado radicalmente.
Fica, no entanto, uma questão: existirá alguma vertente psicológica cuja alteração evidenciaria uma alteração da identidade pessoal? Apenas vejo uma e, mesmo assim, com algumas reservas: a memória. Não a memória de factos (lembrar-me que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia) ou a memória de hábitos e competências (por exemplo, saber andar de bicicleta), mas, sim, lembrar-me de mim próprio em situações distintas. E porquê? Porque a memória é a nossa única faculdade físico-psicológica que assegura (constituirá?) internamente - na perspectiva da primeira pessoa - a identidade de cada um de nós ao longo do tempo (isto é, que nos permite experienciar a identidade de dois estados de consciência nossos em momentos bem distintos).

6 comentários:

hfm disse...

Difícil de comentar ou acrescentar.

Marta Rema disse...

a questão da memória é para mim uma das mais complexas de encarar... não sei até que ponto estou de acordo que a identidade pessoal esteja dependente de haver consciência de si em momentos temporais distintos. se eu não me lembrar de mim há um mês atrás, isso não quer dizer que a consciência de mim seja diferente agora do que nessa altura. significa apenas que não me lembro. a lembrança e o esquecimento comprometem de facto a minha unidade distintiva?... mas a outra hipótese, do corpo, ainda me traz mais problemas...

Bhixma disse...

O teu comentário dá bem conta dos dois lados do problema. Ou é a memória de si que *constitui* a identidade pessoal ou a memória de si *evidencia* que somos ainda a mesma pessoa. Julgo que não pões em causa esta segunda hipótese. No meu post sobre Parfit ("Sentimento de Si") também segui esta perspectiva.
O que poderia dizer Locke - defensor da tese mais radical (a que a memória de si nos constitui como sendo a mesma pessoa)? Ele diria - calculo... :-) - que as pessoas se esquecem de vivências de si no passado, mas que isso é natural, pois somos sempre o mesmo ser vivo humano com recordações e esquecimentos. Mas perguntar-nos-ia se poderíamos *sentir* que fomos a mesma pessoa se efectiva e genuinamente não nos lembrarmos... Se alguém nos imputasse responsabilidade pelos nossos actos nessa altura (dessas consciências de si que esquecemos), poderíamos ser moralmente acusados? Não sentiríamos essa acusação como uma injustiça e uma falsa acusação? Ora, se é assim porque é que insistimos que somos a mesma pessoa... não bastaria dizer que somos o mesmo ser humano?
Alguns neo-lockeanos sugeriram que o que importa é a sucessão de recordações e não tanto recordar-me de tal momento passado. Por exemplo, na série temporal P1, P2, P3, P4, P5, pode ser que no presente (P5) não me lembre de P2, mas lembro-me de P4 e quando estava em P4 de P3 até chegar a P2. Tem a vantagem de resolver o teu problema, mas a desvantagem de tornar a memória de si numa questão de algum modo "impessoal" (porque eu já não estou a sentir o P2).

Marta Rema disse...

ok. agora tenho de pensar :-)

p.s.:(e não, claro, não ponho em causa a 2ª hipótese).

Marta Rema disse...

portanto: relação identidade pessoal/tempo= memória de si (ou corpo?); relação identidade pessoal/espaço= corpo (ou ainda memória de si)? o espaço e o tempo em nós e não nós no espaço e no tempo (isto vem do Kant): existência como um dado sensível e não racional (a priori), enquanto espaço e tempo são dados da experiência (a posteriori). (estou a conseguir explicar o que quero dizer...?): o que quero transmitir é, pelo menos para mim, um dos nós centrais do problema, aquele que faz com que não possamos (ou melhor, eu não consiga...) determinar propriamente qual a origem do sentimento de si e resolver a questão da identidade pessoal.

Bhixma disse...

Se percebo bem, colocas a hipótese da memória assegurar o nosso sentimento temporal e o corpo o nosso sentimento espacial.
Como diz Kant, o tempo é a forma a priori das nossas representações internas e o espaço é a forma a priori da nossas representações externas.
A questão é saber o que é que assegura a unidade de todas as nossas representações internas e externas. Kant fala então de um eu transcendental que acompanha todas as nossas representações, que as unifica, *mas que não é susceptível de experiência*. Há uma unidade da experiência, mas não temos uma experiência empírica dessa unidade.
Ainda é uma das melhores explicações do problema, adoptada por Simon Blackburn; não é possível existirem representações sem uma instância unificadora da mesma. Mas qual a natureza desta última?

Uma outra hipótese seria invocar o conceito de corpo próprio de Husserl (Meditações Cartesianas). Ele distingue o corpo físico e o corpo próprio. Este último só pode ser vivido e experienciado por cada um de nós, mas torna-se para os outros corpo físico. Cf. a diferença infinita que vai entre um corpo a sofrer e a observação do mesmo por um médico.
Mas claro que o problema mantém-se: afinal o que é confere essa vertente de "próprio" ao corpo?

Uma última nota: já são muito poucos os autores que subscrevem a hipótese do corpo. E a razão é simples: é credível pensar-se que se transplantar o cérebro de uma pessoa para um outro corpo também vai a identidade pessoal nesse transplante... daí agora falar-se do critério cerebral da identidade pessoal. Para não prolongar mais este comentário, não vou pôr agora as objecções a esse critério que é, no entanto, bem legítimo.