domingo, 26 de outubro de 2008

Sentimento de Si



Derek Parfit publicou nos anos 80 uma das obras mais influentes sobre o problema da identidade pessoal. Este problema pode ser formulado de vários modos, jogando-se nele várias questões complementares, mas distintas: 1ª qual a natureza do sentimento de si próprio? 2ª qual é o critério que me permite afirmar que sou agora a mesma pessoa do que aquela que fui no passado? (por exemplo, se sou a mesma pessoa do que aquela que escreveu o post anterior) 3ª que evidências tenho eu que me permitem afirmar que sou a mesma pessoa em tempos diferentes? O grande problema das teorias sobre a identidade pessoal é que confundem estas três interrogações fundamentais.
Derek Parfit defendeu na obra referida (Reasons and Persons, infelizmente ainda não traduzida para português) a seguinte tese: identity is not what matters (a identidade não é o que importa) nem em termos éticos nem pessoais. Ele parte de uma ideia de David Wiggins (Identity and Spatio-temporal Continuity) segundo a qual se cortarmos o corpo caloso que liga os dois hemisférios cerebrais constituem-se duas correntes de consciência num mesmo corpo. E, assim, Parfit pode imaginar situações semelhantes a esta: se fizermos o transplante dos dois hemisférios para dois crânios distintos teremos duas pessoas que afirmarão possuírem a mesma identidade do que a original (antes da separação dos hemisférios e dos transplantes). Logo, a identidade pessoal é um conceito ambíguo e, como tal, deve ser considerado irrelevante. Se os dois hemisférios do meu cérebro forem transplantados para dois novos crânios, o que chamo a minha identidade pessoal multiplica-se por dois. Cada um dos novos seres dirá que fui eu no passado antes do transplante porque não só tem memórias semelhantes, mas também porque há uma continuidade corporal (cada um deles possui um dos hemisférios cerebrais).
A meu ver, a tese de Parfit segundo a qual a identidade pessoal não importa é errada, mas tem a grande vantagem de mostrar que as duas principais evidências - continuidade de memórias e continuidade corporal - não são critérios suficientes para assegurar a identidade pessoal. O erro de Parfit foi o de se ter esquecido da primeira questão assinalada no início deste post: o sentimento de si. E a questão sobre a sua natureza mantém-se tão actual existam ou não duas pessoas que hipoteticamente afirmam que foram eu no passado. A tese de Parfit é o corolário das "visões de nenhures" (views from nowhere, para utilizar a expressão bem forte de Thomas Nagel) em que a perspectiva da primeira pessoa é anulada. Ora, a esse nível, a identidade é realmente o que importa...

5 comentários:

Urban Cat disse...

Um beijinho e uma boa semana para ti

hfm disse...

Gostei de conhecer.

Marta Rema disse...

não estou segura de ter realmente compreendido o que diz a finalizar o post. o que interessa para ambas essas duas 'novas pessoas', com memórias semelhantes, é o facto de sentirem que são (foram) uma determinada pessoa, aquela determinada pessoa que as originou? a visão de nenhures é ter falseado a perspectiva que pertence a um em dois? claro que o sentimento de si tem de ser encarado como in-fragmentável (agora não me consigo expressar melhor...), mas é isso que está a dizer aqui?

Bhixma disse...

A questão é esta: os meus dois "filhos" deveriam ter segundo os critérios tradicionais - continuidade de memórias e continuidade corporal - a mesma identidade pessoal e, no entanto, como é evidente, têm "sentimentos de si" (Self, Soi, Selbst) distintos. Ora, como é que isso é possível? Bem, é necessário pensar num melhor critério...
Sobre a "visão de nenhures" (view from nowhere), trata-se de uma expressão de Thomas Nagel para criticar aqueles que colocam a questão do "sentimento de si" (Self) a partir exclusivamente de uma perspectiva da terceira pessoa. Asssim, na "visão de nenhures", "eu", "tu",... é apenas mais uma coisa entre outras coisas.

Marta Rema disse...

ok. obrigada!