segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Identidades confusas (3)



Uma típica confusão sobre a identidade pessoal consiste em identificar "pessoas" e "seres humanos". Se fizermos essa equivalência, a meu ver, errada, a questão da identidade pessoal só se coloca aos humanos. Já Locke, no século XVII, mostrou que esta identificação não tem sentido. Ele conta a história de uma papagaio de um português que tinha tais capacidades de raciocínio e de linguagem que deixava os seus ouvintes atónitos. Segundo o pensador inglês, pouco importa se esta história é ou não verdadeira. O que é interessante, segundo Locke, é que nunca chamaríamos homem a esse papagaio, mas nada nos impediria de considerarmos que estávamos em face de uma pessoa. Ser pessoa não é, assim, ter o corpo humano, mas antes possuir um conjunto de predicados que consideremos essenciais numa pessoa.
Infelizmente (ou felizmente, conforme as perspectivas...) nunca houve, que se saiba, qualquer contacto com seres extraterrestres; mas se tivesse havido e se os putativos "marcianos" manifestassem comportamentos pessoais, nunca lhes chamaríamos "seres humanos", mas antes seres pessoais oriundos de "Marte".
Fica então a questão de saber o que são pessoas? Diria que são todos os seres que têm sentimento de si e que são capazes de se reconhecerem a si mesmos em momentos temporais distintos. A forma singular como o realizam é, no essencial, indiferente. Outros seres com sistema nervosos central certamente terão essas mesmas propriedades pessoais e, no limite, quem poderá afirmar que o sentimento de si só se realiza em seres orgânicos semelhantes a nós? Vamos supor que os tais "Marcianos" tinham a forma de plantas terrestres, mas conseguiam transmitir-nos a ideia de que eram inteligentes e que tinham sentimento de si. Será que deixariam de ser pessoas por causa do seu aspecto vegetal? Por exemplo, em relação ao sentimento da dor nem todos os seres vivos utilizam os mesmos sistemas nervosos para obterem experiência dolorosas. A dor realiza-se com sistemas funcionais distintos. Se assim é, por que razão teremos de restringir o sentimento de si e a identidade pessoal aos seres humanos? Num registo completamente diferente, a teologia nunca teve problemas em conferir os predicados pessoais em relação a Deus e, no entanto, tal não significou que se identificasse Deus com o homem. Não é, assim, verdadeiro que "pessoa" e "ser humano" se identifiquem. Seria totalmente temerário e, a meu ver, errado dizer que só se é pessoa se se for um ser humano,
Claro que a tese que defendemos abre duas novas questões: 1. conseguiremos um dia construir máquinas artificiais com sentimento de si (semelhantes ao HALl 9000 do 2001 Odisseia no Espaço que não só cantava as melodias da sua "infância" como lutava pela sua sobrevivência)? 2. Será que o facto de se ser humano é suficiente para se ser pessoa? São questões bem reais às quais é difícil dar uma resposta conclusiva. Por exemplo, o modo como respondermos à segunda questão condiciona todas as nossas questões sobre os grandes problemas do começo e do fim da vida humana (da interrupção voluntária da gravidez à eutanásia).

1 comentário:

Marta Rema disse...

exacto. as perguntas sem resposta consomem-me!