sábado, 23 de abril de 2005

Deus como Ausência Pura

"O molde intelectual, as formas sociais, as convenções linguísticas que acompanharam a transformação, talvez no oásis de Cades (Kadesh), do politeísmo na concepção mosaica de um Deus único, estão para além do alcance da memória. [...] As dimensões do acontecimento, a sua ocorrência na realidade do tempo, são indiscutíveis e continuam ainda hoje a fazer-se sentir. Mas não temos modo de saber como foram substituídas as antigas concreções culturais nem os velhos reflexos naturais de um animismo multiforme. O mais remoto horizonte refracta a luz que dele nos chega. O que devemos apreender de novo e guardar presente no espírito, com o máximo despojamento possível, é a singularidade, a estranheza assombrosa da ideia monoteísta. Os historiadores da religião ensinam-nos que a emergência da concepção mosaica de Deus é um facto único na experiência humana e que em nenhuma outra parte do espaço ou do tempo surgiu alguma vez outra noção realmente comparável. A qualidade abrupta da revelação mosaica, o carácter definitivo do credo do Sinai, abalaram a psique humana nas suas raízes mais profundas. E a ferida jamais cicatrizou por completo.
As exigências feitas ao espírito são, como o nome de Deus, insoletráveis. O cérebro e a consciência são intimados a revestir a fé, a obediência, o amor, numa abstracção mais pura, mais inacessível ao sentimento comum do que as mais altas matemáticas. O Deus da Torah não se limita a proibir a construção de imagens que O representem. Não se limita a não permitir a construção de imagens. Os seus atributos são também, como concisamente Schoenberg os exprime em Moses und Aron [Moisés e Aarão]: «Inconcebíveis porque invisíveis; porque incomensuráveis; porque intermináveis; porque eternos; porque omnipresentes; porque omnipotentes.» [...]
Quantos seres humanos foram alguma vez capazes, seriam alguma vez capazes, de albergar no seu íntimo uma omnipresença inconcebível? Para todos, com a excepção de muitos poucos, o Deus mosaico foi desde o início, até mesmo quando apaixonadamente invocado, uma Ausência descomedida [...]. Persegue a consciência humana, exigindo-lhe que se transcenda a si própria [...]
Historicamente, as exigências do monoteísmo absoluto revelaram-se intoleráveis. O Antigo Testamento é uma sucessão de motins, de regressos espasmódicos mas repetidos aos velhos deuses, que a mão podia tocar e a imaginação acolher. A fórmula paulina propôs uma solução útil. Ao mesmo tempo que conservava alguma coisa do vocabulário e das feições simbólicas centralizadas do monoteísmo, proporcionava lugar às necessidades pluralistas e figurativas da psique. Tanto nos seus aspectos trinitários e na sua proliferação de personagens santas e angélicas, como na sua versão vivamente material de Deus Pai, de Cristo, de Maria, as Igrejas cristãs, com raríssimas excepções, têm sido híbridas de ideais monoteístas e de práticas politeístas. O que explica a sua flexibilidade e a sua força sincrética. O Deus único, inimaginável - ou rigorosamente falando, «impensável» - do Decálogo nada tem a ver com o panteão trinitário e generosamente figurativo das igrejas cristãs.
Mas esse Deus, transparente como o ar do deserto, não desapareceu. A memória do seu ultimato, a presença da Sua Ausência, assombraram o homem ocidental.”

George Steiner, In Bluebeard’s Castle. Some Notes Towards the Re-definition of Culture, Londres/Boston, Faber & Faber, 1971, pp.36-38.

Sem comentários: