Mistérios de Ornitologia

Compreender esta imagem é entender a civilização indiana. Desde os textos védicos ao "Canto daquele que é Feliz" (a Bhagavad Gita), o modelo de inteligibilidade do real é centrado nesta alegoria visual. Dois pássaros empoleirados numa mesma árvore; um deles age, comendo freneticamente os frutos que encontra; o segundo apenas contempla a sofreguidão do primeiro. Se nos hinos védicos a primazia parece ser dada à ave activa, pelo contrário, os textos posteriores consagram e glorificam a ave contemplativa. Será que somos capazes de apreender este mistério de ornitologia? Não sei... para nós ocidentais, a alma é una e indivisível (e é aliás a prova clássica da imortalidade da alma); pelo contrário, a visão hindu do mundo está centrada na ideia de duas almas: Atman (que tem a mesma raiz histórica do verbo alemão atmen - "respirar") e Jiva (a alma individual) que, em última instância, é material. E não só. O ideal indiano do sábio consiste na transmutação da actividade desenfreada da mente e do corpo num espelho sereno e meditativo da pessoa (purusha) como "si imóvel". O yoga não é mais do que o processo desta transmutação. Existe uma outra civilização que vive fascinada pela imagem dos pássaros - que fala mesmo de um "rei dos pássaros". Refiro-me naturalmente à civilização iraniana que constitui a "sombra" da indiana (enquanto para os indianos os "devas" são deuses e os "asuras/ahuras" são demónios, para os persas, a verdade encontra-se na ideia inversa). Attar, poeta e sufi iraniano, que escreveu um livro de poemas sobre pássaros, fala-nos desse "pássaro" (Simurgh) em que todos os outros acabarão por coincidir. Aristóteles com o seu "motor imóvel" também não esteve longe desta visão de "pássaro", mas preferiu, como os indianos, saber manter as distâncias. Seria também injusto esquecer as imagens bíblicas de Marta e Maria (a que escolheu a melhor parte) e a glorificação dos lírios do campo e das aves do céu que vivem sem cuidado! :-)