Será o reino dos céus próprio dos violentos? Foi essa a hipótese levantada nos dois comentários de "mz" (o último), na defesa que fez do filme de Mel Gibson sobre a Paixão de Cristo. Como sou muito "preguiçoso", vou ripostar lentamente (em vários "posts") a esta concepção. A tese defendida por "mz" diz-nos que a violência dirige-se especificamente em relação ao "Tentador", citando-se Mateus 11,12 para mostrar como, para Jesus, o reino dos céus é dos violentos.
Em primeiro lugar, parece-me inquietante assumir como um dado real a personificação de uma figura maligna. No budismo, também encontramos a figura de "Mara" (literalmente em sânscrito, o "destruidor") que tenta Siddharta Gautama, o futuro Buda, procurando que ele se desvie do caminho traçado (esta cena é também mostrada no filme de Bertolucci). Mas essa história é assumida consensualmente como um mito, o que significa que o "Tentador" é apenas a personificação imaginária de uma instância violenta e negativa presente em todos nós. Se não "desmitologizarmos" as narrativas míticas - como sublinhou Bultmann no âmbito do Cristianismo - corremos o risco de projectarmos noutrem os nossos próprios medos e ódios. Mas mesmo que interiorizemos o problema, mesmo que assumamos a responsabilidade, não me parece que o caminho mais feliz seja o da violência interior. O diálogo íntimo, a meditação, o cultivo do "espírito da paz" parecem-me ser formas mais felizes de lidar com o mal, pela simples razão de que "dissolvem" a "energia negativa" (i.e., a violência) que o alimenta. A não ser assim, corre-se o risco de "lançar achas para a fogueira". Sobre Mateus 11:12, estive a ver o texto grego e eis o que encontrei (entre parênteses, encontra-se uma tradução plausível de cada termo grego...a transliteração, assim como a tradução, foi a melhor que me foi possível:
"de (e) apo (desde) êmera (dias) iôannês (João) baptistês (Baptista) eôs (até) arti (agora) basileia (reino) ouranos (céu) biazô (sofre) kai (e) biastai (violentos/bestas) arpazousin (tomam violentamente) autên (ele)."/ "e desde João Baptista até agora, o reino do céu sofre e os violentos tomam conta dele" (Mt 11,12).
Seria estranho que Jesus estivesse a defender que o "reino dos céus" é próprio de seres bestiais e violentos... Encontro duas explicações prováveis: a violência a que os profetas, a partir de João, são sujeitos (contrariando assim os tempos em que vigorava o espírito da Tora e dos profetas - passagem referida imediatamente a seguir) ou então a percepção de que os zelotas (os defensores de soluções violentas para o reino messiânico) estavam a dominar o novo movimento profético iniciado por João e continuado por Jesus.
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