quarta-feira, 23 de março de 2005

Espírito da Paz

Este é o meu comentário ao texto da "mz", que longe de ser um "sermão" é um texto muito interessante, mas inquietante, nomeadamente quando afirma que, para Jesus, o "reino de Deus" é dos "violentos".

Mt 26:52 Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada, à espada morrerão.
Lc 6:27 Eu, porém vos digo a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te bater numa das faces oferece-lhe também a outra.
Mt 9:13 Ide, pois, e aprendei o que significa: Compaixão é o que eu quero, e não o sacrifício.
Mt 5:9 Felizes os que procuram a paz entre os homens, porque Deus lhes chamará seus filhos!

Para os budistas, Jesus é um "bodhisattva" (como, aliás, o próprio Siddharta Gautama), palavra difícil, mas que tem um significado muito simples: "bodhisattva" é aquele que nunca entrará no "paraíso" enquanto existir um único ser a viver no "inferno". Sobre a questão da firmeza, recordo as palavras históricas, proferidas por um hindu, Mahatma Gandhi, a um sacerdote cristão: "não é Jesus que vos diz que quando te baterem numa face, devem oferecer a outra?" Frase já dita por Jeremias no Livro das Lamentações (3:30) : "que dê a sua face a quem o fere". Será que a melhor simbolização da firmeza deste "espírito da paz" é o uso da violência (como no filme de Gibson)?

A violência, como resposta em face do mal, nunca será resposta nenhuma, pela simples razão de que o mal é, ele próprio, a violência! E ninguém lutará contra a violência enquanto não estiver em paz consigo próprio.

Mas deixemo-nos de teologias e vamos ao essencial. A meu ver, é-nos dito por Karen Armstrong, num texto citado, por mim, em Fevereiro:

"As Igrejas e as pessoas religiosas em geral esqueceram a própria noção de compaixão. Todas as grandes religiões do mundo insistem que a única base das ideias religiosas, dos símbolos e de qualquer teologia, é a compaixão em relação a todos os seres vivos. O Novo Testamento, os Profetas hebreus e o Corão repetem-no sem cessar. É isto que é a religião. (...) Não se trata de provar a existência de Deus nem de encontrar o Graal para o levar triunfalmente ao Rei Artur. Isso não é a religião. É, sim, abrir o seu coração aos outros, pois só no momento em que nos reconciliamos com os nossos inimigos é que encontramos o divino. As Igrejas esqueceram-se disso, demasiado ocupadas com o seu dogma ou em condenar outros seres humanos que têm crenças diferentes. Dilaceram-se em torno de temas tão ridículos como o de saber se as mulheres devem ascender ao sacerdócio ou sobre qual o melhor tipo de contracepção."

Desculpem o "sermão"...

1 comentário:

Anónimo disse...

Pelo teor da resposta, é manifesto que não me expliquei bem no comentário que fiz anteriormente (a propósito, peço desculpa por tê-lo inserido duas vezes; não era um truque de propaganda, é mesmo nabice informática).
É absolutamente inegável que Cristo pregou sempre a misericórdia e a compaixão com quem faz o mal, e o perdão (até “setenta vezes sete” vezes, responde ao estupefacto Pedro, Mt 19, 22) com quem nos faz o mal. Mas não com o Tentador, que pretende induzir-nos a fazer o mal. A esse, diz Deus logo no Génesis (3, 15), depois de ter sido posto ao corrente do lamentável incidente da maçã: “Esta [a mulher] esmagar-te-á a cabeça”. É esse o sentido de Mt 11, 12: “Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos Céus tem sido objecto de violência e os violentos apoderaram-se dele à força”, e de Lc 12, 51: “Julgais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não, digo-vo-lo Eu, foi antes a divisão [em algumas traduções está ‘a espada’]”. A violência e a espada não serão nunca contra os irmãos, mas serão contra nós próprios, sempre que quisermos amar-nos mais do que a Deus, e contra os anjos caídos, que visaram antes a sua glória do que a glória do Criador, e por isso foram expulsos para sempre da contemplação de Deus no céu (vi recentemente o admirável quadro em que Brueghel-pai retrata esta cena bíblica). No cristianismo, a paz interior é fruto da guerra contra o amor desordenado a si mesmo.
A visão que os budistas têm de Jesus é curiosa, mas (se bem a entendi) inconsistente com os ensinamentos do próprio Jesus, que fala repetidas vezes no carácter eterno e irrevogável da sentença que se segue ao juízo final; e.g., Mt 25, 31 ss.: “Quando o Filho do Homem vier na Sua glória (…), dirá aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de Meu Pai, recebi em herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo (…)’. Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno que está preparado para o diabo e para os seus anjos (…).’” Igualmente claro é Mc 10, 43-44 (um exemplo da violência contra si mesmo a que me referi anteriormente): “Se a tua mão é para ti ocasião de pecado, corta-a; mais vale entrares mutilado na Vida do que, tendo as duas mãos, ires para a Geena do fogo inextinguível, onde o verme não morre e o fogo não se apaga.” As almas que são condenadas ao inferno são-no pelos seus próprios actos, e não podem de lá sair porque não querem de lá sair; digamos que nem Deus as pode de lá tirar (dado que decidiu prover-nos de liberdade e tornar-nos capazes de decidir o nosso destino).
Finalmente, as palavras de Karen Armstrong, por muito interessantes que sejam, não descrevem adequadamente o cristianismo (e julgo que também não se aplicam com propriedade, nem ao judaísmo, nem ao islamismo, mas não me atreveria a ser taxativa). O cristianismo não é uma ideologia de fraternidade universal, mas uma doutrina de salvação individual, por via do amor – em primeiro lugar, do amor de Deus pelos homens e, em consequência, do amor dos homens, a Deus e aos outros. Quando um anjo comunica a José, em sonhos, que o Filho de Maria é Filho do Espírito Santo, descreve a missão dessa criança da seguinte maneira: “Ele salvará o povo dos seus pecados” (Mt 1, 21). Jesus Cristo veio ao mundo revelar aos homens a natureza de Deus – que Deus é uma trindade amorosa – e morrer por eles, como Vítima perfeita da nova aliança, em substituição das vítimas imperfeitas da antiga aliança. Para pregar “a compaixão em relação a todos os seres vivos” (e nem me lembro de nenhuma passagem em que Cristo se mostre tão abrangente…), não era preciso morrer numa cruz e ressuscitar; ora, foi isso que Cristo veio fazer, a fim de nos abrir as portas do céu, da participação na vida divina, que até então se encontravam fechadas para nós, em consequência do pecado original.
A salvação, obtida por Cristo na cruz para todos, tem de ser actualizada por cada homem através de uma sucessão de decisões pessoais, nomeadamente através do amor, em particular do amor ao próximo, porque “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar o seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama o seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, que não vê?” (I Jo 4, 20). Mas, para ser salvífico, este amor não pode ser simples solidariedade, tem de ser um amor de caridade, ou seja, o amor do próprio Deus (“Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei”, Jo, 15, 12); e, para sê-lo, tem de ser subordinado e alimentado do amor a Deus; é por isso que, quando lhe perguntam qual é o maior dos mandamentos, Cristo responde reiteradamente: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é-lhe semelhante: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Mt 23, 37-39); não conheço nenhuma passagem dos Evangelhos em que esta ordem dos dois mandamentos seja alterada.
Peço desculpa pela teologia…. ;-)