quinta-feira, 17 de março de 2005

Shoah

Aquilo que escrevi sobre a Shoah (conhecido no Ocidente como o Holacausto nazi) suscitou, como podem ver, alguma controvérsia. Como considero este tema capital no âmbito da filosofia da história, retorno a ele. É um facto inegável e infelizmente trivial que já sucederam crimes horríveis ao longo da história da humanidade. As contínuas invasões de todo o mundo civilizado (islâmico, europeu, indiano, chinês) por hordas de mongóis atingiram níveis de violência e de crueldade que transcenderam o pior que a nossa imaginação pode representar. E os mongóis até eram tolerantes...O genocídio de povos não é algo de novo na história (lembrem-se dos arménios dizimados pela Turquia, dos tibetanos pela China, já para não referir do recente conflito na Jugoslávia e no Sudão). Os Khmers vermelhos no Cambodja condenaram à morte - directa ou indirectamente - um terço da população daquele país fabuloso. Os crimes do "pai Estaline" afectaram pela morte milhões de pessoas. A guerra civil no Ruanda assumiu proporções inimagináveis com a cumplicidade e o silêncio de todos nós.
Se assim é, o que é há de único no Holocausto nazi? Terem sido os judeus e os ciganos os bodes expiatórios de um regime totalitário? Qualquer regime totalitário cria os seus bodes expiatórios, pois só pode sobreviver com eles...
O que há de ÚNICO na Shoah é que o extermínio foi realizado em nome da ciência (a tal eugenia fundada nos conhecimentos de uma genética a dar os seus primeiros passos), da arte (com a batuta do genial Wagner, o grande compositor alemão que, um dia, disse dos judeus: "é pena que eles não tenham ardido todos", quando um incêndio ceifou a vida de dezenas de judeus numa sinagoga), da filosofia (será preciso recordar as "maravilhosas" frases de Hegel, de Schopenhauer, de Nietzsche, de Spengler sobre a necessidade de erradicar os judeus e o judaísmo da nossa civilização)? A Europa que realizou a Shoah não era uma região primitiva e bárbara. O que faz da Shoah um caso ÚNICO é que foi a nossa Civilização que cometeu um dos actos mais horríveis da história. O que me assusta na Shoah não é a crueldade de algum guarda psicótico nazi; o que me assusta na Shoah é aquilo que assustou Hannah Arendt, a saber, a "banalidade do mal", bem personificada, aliás, em Eichmann. Quando Eichmann diz que sempre gostou dos judeus não estava, a meu ver, a mentir. Para quê mentir, quando já não tinha nada a perder? Os principais dirigentes nazis (mesmo aqueles que dirigiram alguns dos piores campos de extermínio) não eram pessoas incultas, sem inteligência, sem formação filosófica e artística...e, no entanto, foram capazes de condenar milhões de crianças à morte.
George Steiner dizia que a existência de um Schubert *talvez* nos possa redimir a todos...talvez! Mas duvido, pois é o mesmo Steiner que se pergunta como é que alguém pode tocar maravilhosamente Beethoven à noite e exterminar crianças no dia seguinte. De uma forma fria, racional, calculista, com o mínimo de confusões possíveis... É essa a "razão" que se esquece das pessoas como fins em si mesmos. Se há algo de semelhante à Shoah nazi, só me recordo da decisão de lançar duas bombas atómicas sobre a população civil de Hiroshima e de Nagasaki. Encontramos aí a mesma lógica, fria, racional que não se importa que tudo vá pelos ares desde que se esteja convicto de "ter razão".

7 comentários:

Bhixma disse...

Obrigado pelas suas palavras e pela referência ao Expresso do Oriente. O que eu quis sublinhar foi o ambiente anti-semita da cultura europeia. Em relação a qualquer daqueles quatro filósofos é sempre possível descobrir textos que apontam para uma direcção diferente...Mesmo o próprio Wagner nomeou um maestro judeu para dirigir a sua última obra, o Parsifal. Mas o anti-semitismo minava a cultura europeia (veja-se a descrição deste sentimento no romance de Proust) e só preciava de um rastilho para explodir.

Anónimo disse...

da perspectiva...

há muito que me fascinou essa perspectiva de dar um tiro em alguém e calmamente beber um copo depois. pela frieza. por cruamente pôr a descoberto a potencialidade do indivíduo. porque, depois de descobrir isso, não se pode deixar de ficar abismado com um "é assim tão simples..." e, porque, me mete medo. um medo horrível da existência e do poder que toda a gente tem nas mãos. mas adiante...

porque o pretexto é o menos importante. aquilo que o gera é que é o busílis da questão. os crimes do pai estaline não deixam de ser tão frios como os do nazismo(1). nem sequer os dos khmers. ou aqueles que presidiram ao massacre dos arménios na Turquia. tem tudo a ver com "eles" não são nós, "eles" não se encaixam no nosso modelo. e o dito "modelo" tanto é uma religião, como um país. é, em suma, uma causa. assusta o olhar clínico em Auschitz? a mim tb me lixa o juizo ver os tanques a cruzar as ruas da palestina. tb me lixa o juízo ver as pessoas a explodir nas ruas de Israel. tb me lixa o juizo ver os documentários dos tratamentos aplicados aos soldados russos apanhados pelos guerrilheiros tchetchenos. e vice-versa. e se uns parecem ser animais e os outros comportarem-se muito racionalmente, no fundo, a questão resume-se a "eles" não serem como nós (ou o "eles" não encaixarem no modelo que fizemos do mundo). depois é a colagem do rótulo. acho q o importante era olhar para o conteúdo... no final de contas, o nazismo era uma religião.

(1) já antes de Estaline se faziam limpezas (penso em Lenine, Trostky). e qual era a desculpa? porque as pessoas não encaixavam (ou se "opunham") naquilo que se pretendia ser um mundo perfeito, na caixa, no modelo. e isto, não é "frio"? salvem-nos das pessoas com boas intenções...

Anónimo disse...

acho q a síntese ficou até feita no final do post:

(..)que não se importa que tudo vá pelos ares desde que se esteja convicto de "ter razão".

desde que se "tenha razão", venha ela de onde vier.

Bhixma disse...

Não acha que há algo de estranho num civilização que cria no seu seio um regime que mata milhões de crianças ao som de Bruckner e dos versos de Hölderlin? Acha que é comparável a uma guerra civil ou ao desenlace previsível do ódio cego em relação aos designados "inimigos dos trabalhadores"? Para quem morre, a diferença é nula. Mas, para quem sobreviveu - como foi o nosso caso - a diferença é infinita. Pelo menos, para mim, é...

Anónimo disse...

não, não acho estranho. acho absurdo. mas de um desenlace perfeitamente lógico. acho também que há algo que lhe escapa. por exemplo, nessa história de matar uns poucos e ler Rilke a seguir. porque ele não estava a matar algo mais que insectos, algo que considerava completamente desprovido de humanidade. se os considera-se seus iguais a coisa não se teria passado assim.
(..)
não acho que fosse o "ódio cego em relação aos designados "inimigos dos trabalhadores"" que empurrou muita gente para os campos soviéticos. leia os processos, especialmente aqueles das purgas dos anos 20 e 30.
(..)

Para quem morre, a diferença é nula. Mas, para quem sobreviveu - como foi o nosso caso - a diferença é infinita. Pelo menos, para mim, é...

porquê? qual é a diferença? eu gosto de estar vivo e não me sinto mais justificado se for morto por um bebâdo embriagado ou por um tipo com uma desculpa qualquer.

a raiz do problema, aquilo que o torna esta bestialidade possível, é a intelectualização do humano, na geração desse bicho-conceito a que chamam Homem e depois deixa carta branca a incluir estes e excluir aqueles. reparo que padece do mesmo mal. diz "como foi o nosso caso" e eu não acredito que seja um sobrevivente de um campo de concentração (se for, confesso a minha surpresa abismal e deixo as minhas desculpas). e assim não lhe aceito (porque tê-lo, têm-no, basta se capaz de o proferir) o direito de dizer "nosso" se não esteve lá. porque é a mesma linha de racíocinio que cria esse "nosso" que criou a separação que "eles" fizeram.

Bhixma disse...

Três notas sobre o seu comentário: 1. "acho absurdo" - o que é estranho é que esse "absurdo" aconteceu mesmo no coração da Europa civilizada, na nossa civilização; 2. as purgas de Estaline eram sempre justificadas na base de que se tinha detectado mais um "inimigo dos trabalhadores" (mesmo que fosse um ex-aliado); 3. A diferença, se quiser, está no facto do mundo em que vivemos ser o efeito desse "absurdo". E isso tem consequências... até no modo como ouvimos música ou lemos livros.

Anónimo disse...

a três notas...

[1] nao acho nada estranho que tenha acontecido na europa dita "civilizada". tem toda a lógica, é muito mais sofisticado do que ir arrebentar com o pessoal só porque são de um país diferente... afinal isso da civilização e da cultura a algum lado leva. vivam as ferramentas do racionalismo! especialmente quando se partem de permissas erradas e se lava tudo às últimas consequências. o meu "absurdo" vem de tudo isto (as maneiras de pensar que dão azo a estas situações). às vezes parece-me completamente inacreditável de tão estúpido que tudo isto é.

[2] os mortos dos campos nazis tb eram catalogados como "inimigos das pessoas de bem" por assim dizer. o que disse mantém-se: não encaixavam no modelo de mundo perfeito que aquelas fantásticas cabecinhas inventaram. aqueles tipos, de certa maneira também queriam o melhor para a Humanidade. a Humanidade que eles definiram e onde não cabia uma boa série de fulanos.

[3] compreendo (talvez). o que ouve ou lê está tingido porque outros o ouviram ou leram de forma diferente? é lícito...