"Oito painéis, quatro estações do ano, uma só paisagem desenhada. Perco-me horas na minha pintura preferida do Museu Nacional de Kyoto, se se puder chamar pintura ao que vejo, se ver for o verbo apropriado. O museu está vazio, só um guarda por sala faz-me lembrar que não estou em casa. O guarda-funcionário-fantasma está sentado numa cadeira a um canto e pensa no que eu não adivinho. (...)
Pouco a pouco aprendo a ver os painéis, não de um ponto de vista exterior a eles, de fora deles, sujeito confrontado com um objecto à sua frente. O que faço é ocupar um ponto de vista dentro dos painéis, no interior, olhando-os do seu interior. Os painéis não têm centro, a paisagem completa não tem um centro, uma forma que organize o resto à sua volta. Cada elemento ou conjunto de elementos, perfeitamente figurado, pode transformar-se no centro em volta do qual tudo se compõe e se encontra. Coloco-me no bico do pato na parte do outono, e depois sou a pinha verde do pinheiro dobrado pelo peso da neve do inverno, e depois os olhos do coelho assustado, e salto de flor em flor da ameixieira na primavera que desponta, e depois sou a pequena nuvem branca no céu claro do verão sobre o lago onde vivem peixes, que reflecte, sem saber, a beleza do voo dos gansos selvagens. Ver isto que vejo, fazer isto que faço, não é ficar de fora diante de uma obra e dela ter uma apreensão estética, valorizando a beleza, a técnica, a disciplina. Ver isto que vejo, se o verbo ver fosse ver e a palavra obra a aplicada, é fazer uma viagem pelo interior das estações, apreender intimamente a sucessão dos meses, conhecer onde estamos, sair de mim e ser por momentos pato, pinha verde, flor delicada e frágil prestes a cair, nuvem levada à deriva pelo vento. (...)
O centro está vazio, o centro está em toda a parte. Ando na rua e faço isto, que sempre pude fazer e nunca fiz, e o mundo parece-me novo e mais interessante, como se tivesse caído um véu entre mim e ele, e fôssemos a mesma coisa."
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
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