"Desde que aqui cheguei, há hora e meia, vejo um indivíduo de joelhos, dobrado sobre si mesmo, a um canto do lado direito do pequeno jardim. Não vejo o que faz, porque o seu corpo encobre a cabeça e as mãos, mas fico cada vez mais curioso. Lá fora devem estar uns zero graus Celsius, de quando em quando caem breves flocos de neve, e o indivíduo continua na mesma posição, imóvel, dobrado sobre si mesmo. É porventura um jardineiro, mas o que fará um jardineiro há tanto tempo no mesmo lugar onde não vive uma árvore, um arbusto, onde não se vê uma flor?
Com o passar dos dias, a imperiosa necessidade de falar tem-me dado um à-vontade acrescido de falar com quem quer que seja, e resolvo-me a desvendar este enigma, aproximando-se decididamente do indivíduo. Mal chego junto dele, ele levanta-se devagar e fica à minha frente. Estava ajoelhado sobre uma esteira de plástico, traz um avental branco sobre um casaco impermeável forrado a penas e uns óculos vastos e graduados sobre a cara redonda e afável. Tem ar de intelectual inteligente. Peço desculpa de o ter interrompido no seu trabalho e digo-lhe da minha curiosidade. Responde-me num inglês elaborado. O senhor jardineiro, intelectual meditativo, mostra-me primeiro, com um movimento dos olhos, a pinça que tem entre os dedos cobertos por uma luva de borracha, instrumento no qual eu ainda não tinha reparado, e, em seguida, esclarece-me fazendo uma sucinta exposição sobre variedades e espécies de musgo. Pede-me para o acompanhar numa aproximação - um zoom-in - ao pedaço de terra sobre o qual nos sustemos. Basta, para tal, flectirmos as pernas. Após esta descida aponta com uma pinça para um musgo verde-claro e rasteiro, depois para um verde-escuro e alto. Fixa-se neste último, que qualifica de precioso e raro, e faz-me notar como cada pezinho deste musgo tem a forma de uma árvore de tronco direito de onde surgem, em patamares, várias camadas de ramos. Spruce moss, pronuncia com gosto e vaidade, e eu passo a ver claramente em cada pezinho de musgo um cipreste. Fico entusiasmado. O senhor jardineiro-intlectual-meditativo informa-me que o seu trabalho de hoje consiste precisamente em separar as espécies de musgo, de forma a pôr em evidência, em zonas desenhadas, cada uma delas. Faz isso com a ajuda da pinça, com a qual arranca cuidadosamente, um a um, os pezinhos de musgo que estão onde não devem estar. Sinto-me mais entusiasmado. Pergunto-lhe, por mera curiosidade, que superfície consegue trabalhar por dia, e ele responde-me com um sorriso que o dia é tanto melhor quanto menor for o espaço tratado, porque isso significa que o trabalho foi o mais difícil, que os musgos estavam mais intrincados uns nos outros, mais necessitados de ajuda humana para se exibirem na sua identidade única.
Continuamos de cócoras e então o mestre-jardineiro, intelectual catador de musgos, convida-me a apreciar o resultado e, endireitando devagar as pernas, começamos numa ascensão vertical - um zoom-out - a afastar-nos da superfície do solo. Quando regressamos à posição de partida, pede-me para olhar o solo, onde nada vejo de particular excepto que está coberto de musgo. Pergunta-me se não vejo uma floresta de árvores sobre uma colina que desce sobre um vale coberto de prado, um mais escuro e alto e outro mais amarelecido, e eu vejo. Fico maravilhado. Consigo distinguir, um a um, os ciprestes na borda da floresta antes dela se tornar densa. Acrescenta que em vez de estar sempre a olhar por cima posso enviar o meu ponto de vista para baixo, e aí fixá-lo sem precisar de me mover. Não julgo entender o que quer dizer, o que se exprime suficientemente na expressão da minha cara, pois ele continua de imediato. Diz-me que eu não preciso de ver as coisas sempre de fora, a partir do meu ponto de vista, que me posso pôr no lugar delas e ver a partir delas, trocando de ponto de vista. Diz, ainda, que pode parecer difícil, mas para eu ir treinando, que é um bom exercício.
Despeço-me com múltiplas vénias e vários obrigados do senhor jardineiro, mestre zen catador de musgos, e abandono o local com o coração cheio."
Pedro Paixão, Portokyoto. Nuvens à deriva
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