quarta-feira, 7 de julho de 2004

A Primeira Tartaruga

Nada é mais valioso do que uma citação bem feita, se descontarmos naturalmente a ideia que é citada. E, no entanto, as citações parecem ter vida própria e assumirem protagonistas diferentes conforme as ocasiões. Observemos hoje um primeiro exemplo. Stephen Hawking inicia o primeiro capítulo da sua obra "Breve História do Tempo" com a seguinte história: "Um conhecido homem de ciência (segundo as más línguas, Bertrand Russell) deu uma vez uma conferência sobre astronomia. (...) No fim da conferência, uma velhinha, no fundo da sala, levantou-se e disse: "O que o senhor nos disse é um disparate. O mundo não passa de um prato achatado equilibrado nas costas de uma tartaruga gigante." O cientista sorriu com ar superior e retorquiu com outra pergunta: "E onde se apoia a tartaruga?" A velhinha então exclamou: "Você é um jovem inteligente, mas são tudo tartarugas por aí abaixo!" Quando procuramos confirmar a ideia estranha de Bertrand Russell como astrónomo, descobrimos, num primeiro momento, que foi afinal William James que dialogou com a velhinha. Mas quando tentamos conferir o rigor desta nova hipótese, apenas deparamos com uma frase deste filósofo-psicólogo em que ele, a dado momento, refere: "Mas isto não é outra vez o globo, o elefante e as tartarugas?" ("Humanismo e Verdade"). Um dia, abrimos o Ensaio sobre o Entendimento Humano de Locke e lemos: "Se o pobre filósofo hindu (que imaginava que a Terra também precisava de apoio) se tivesse lembrado desta palavra substância, não se teria visto em apuros para procurar um elefante que sustentasse a Terra e uma tartaruga que sustentasse o seu elefante." (II, XIII, 19) A velhinha era afinal um jovem, filósofo e hindu; por sua vez, parece que nos basta uma tartaruga... Como Locke parece pressupor o nosso conhecimento deste filósofo, mais dia menos dia, descobriremos o autor de uma versão mais antiga desta história. Quem sabe?! Talvez tenha sido a primeira tartaruga a escrevê-la...

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