domingo, 9 de janeiro de 2005

A Flor que não cicatriza....

Como não temos a tradição do "Remembrance Day", quando nos confrontamos com certos versos do poema de T.S.Eliot (The Waste Land/A Terra Desolada), sentimo-nos perdidos. Ora, o poema foi publicado pela primeira vez na revista londrina Criterion em 1922 e, naturalmente, reflecte sobre a desolação derivada da primeira guerra. Não tenho a menor dúvida que o poeta pensou que a civilização europeia tinha terminado aí...
Sem dúvida que a imagem da terra desolada remete para a cultura celta e para as lendas do Graal. No mito antigo, quando a sacerdotisa das fontes foi brutalmente violada, a terra secou, as árvores estiolaram, a vida definhou. Na lenda do Graal, é a impotência em curar a ferida do Rei Pescador (ou de Amfortas nas versões de Eschenbach e de Wagner do Parzifal/Parsifal) que explica a desolação circundante. Mas estes símbolos são reavaliados por Eliot à luz da guerra feita, agora, à medida "industrial".

"There I saw one I knew, and stopped him, crying: 'Stetson!
You who were with me in the ships at Mylae!
That corpse you planted last year in your garden,
Has it begun to sprout? Will it bloom this year?' " (vv. 69-72)

"Aí vi alguém que conhecia e fi-lo parar, gritando: 'Stetson!
Tu, que estiveste comigo na frota em Mylae!
Aquele cadáver que plantaste o ano passado no teu jardim
Já começou a despontar? Será que dá flor este ano?' " (vv.69-72)

Milae ou Milazza é o local na Sicília que identifica a batalha naval em que Roma triunfa sobre Cartago numa das guerras púnicas. Como é evidente, simboliza a génese da civilização ocidental quando Roma dá os primeiros passos para se tornar na potência dominante no mundo ocidental. A primeira guerra indica, pelo contrário, o fim dessa mesma civilização.
A questão colocada no poema a esse tal Stetson é propositadamente escrita para nos chocar. Por um lado, baseia-se na crença amplamente divulgada (e comemorada no Remembrance Day) que os campos da morte dão lugar a campos de flores. Mas, por outro, Eliot quer mostrar-nos como a crença básica da nossa civilização na ressurreição, na regeneração da vida, se perdeu. Esta crença era básica, pois fundava-se na ideia de que a morte não tinha a última palavra...

O Remembrance Day explica, em parte, os versos iniciais do poema:

"April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers." (vv. 1-7)

“Abril é o mais cruel dos meses, gerando
Lilases na terra morta, misturando
A memória e o desejo, agitando
Raízes inertes com a chuva da Primavera.
O Inverno manteve-nos quentes, cobrindo
A terra com a neve do esquecimento, alimentando
Um pouco de vida com tubérculos secos.” (vv.1-7)

A Primavera traz agora a lembrança daqueles que morreram, recordando-nos o colapso de uma cultura. O passado (a memória) e o futuro (desejo) confundem-se. No entanto, o poema fala-nos de lilases e não de papoilas :-) A explicação é-nos dado por Harold Bloom. Eliot alude igualmente, através dos lilases, a um poema de Walt Whitman
sobre a morte de Lincoln, When Lilacs Last in the Dooryard Bloomed. Neste poema sobre Whitman expressa a ideia de uma ferida aberta, com o assassínio de Lincoln ("O Captain! My Captain!") em 1865, ferida que eclode através do retorno cíclico da flor de lilás. Mas, a flor já não cicatriza a ferida, antes a acentua!

"When lilacs last in the dooryard bloom'd,
And the great star early droop'd iun the western sky in the night,
I mourn'd, and yet shall mourn with ever-returning spring."

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